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OPINIÃO ECONÔMICA
Argentina: o triunfo na agonia
RUBENS RICUPERO
"O impensável está se tornando inevitável." Assim
começava, há cerca de um mês e
meio, artigo no "Financial Times"
de Ricardo Hausmann. Particularmente profético era o final do primeiro parágrafo: "Se o FMI não
puder chegar a acordo com a Argentina sobre um programa econômico, o país não poderá e não
deveria pagar os credores oficiais
internacionais -o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e o Banco Interamericano de
Desenvolvimento". No original inglês é mais forte: "The country will
and should default", isto é, uma
constatação de fato inelutável
("will") reforçada por algo de
aconselhável nas circunstâncias
("should").
Como se sabe, o inimaginável
passou a ser história no dia 14 de
novembro, quando a Argentina
decidiu não efetuar o pagamento
de US$ 805 milhões ao Banco
Mundial. O surpreendente na opinião antecipatória de Hausmann é
o autor: ex-economista-chefe do
BID, professor de Harvard, ministro da Economia da Venezuela, em
inícios dos 90, responsável pelo
programa econômico com endosso
do FMI, contra o qual se desencadearam os sangrentos motins que
deram início às persistentes convulsões venezuelanas, primeira
manifestação do novo ciclo de instabilidade da América do Sul pós-consenso de Washington. Trata-se
de economista ortodoxo, defensor,
não faz muito tempo, da dolarização.
Como é possível que pessoa dessas impecáveis credenciais tenha
de admitir o calote mais grave, o
dirigido contra as instituições oficiais? Por um raciocínio de lógica
econômica igualmente impecável.
A única razão pela qual as instituições continuam a ser pagas, mesmo quando se suspendem os pagamentos aos demais credores, é a suposição de que elas seguirão aportando recursos ao país devedor. No
momento em que as entidades oficiais apenas extraem dinheiro de
um país, sem fornecer novos fundos, deixa de existir justificativa
para que os outros credores prejudicados lhes outorguem esse estatuto de credor preferencial. Ora, no
corrente ano, as instituições já arrancaram da Argentina cerca de
US$ 4 bilhões e esperavam bombear mais US$ 3 bilhões até o fim
do ano.
As reservas argentinas estão em
US$ 9 bilhões e alcançariam para
pagar o Banco Mundial agora.
Acontece que em janeiro o país terá de saldar US$ 1 bilhão ao FMI e
US$ 3 bilhões mais em março. O total de pagamentos aos organismos
financeiros em 2003 será de US$ 10
bilhões, superando o nível das reservas. Portanto, hoje ou amanhã,
a inadimplência será inevitável.
Hausmann teme, sobretudo, o efeito desastroso que isso teria sobre o
BID, que emprestou à Argentina
quase 100% do seu capital realizado e que perderia, nesse caso, sua
classificação AAA.
Por que então não se ajuda o
nosso vizinho a obter um indispensável reescalonamento de pagamento de emergência? A explicação, segundo o autor, é que, mesmo
para firmar um programa mínimo, à espera de que o governo a ser
eleito em março possa negociar pacote mais ambicioso, o FMI insiste
numa "lista de exigências bem-intencionadas, mas secundárias". Na
ausência da concessão mínima do
reescalonamento, conclui, "a Argentina não deveria pôr-se em perigo a si mesma e a seus outros credores por tentar efetuar pagamentos vultosos às instituições (já que)
ela tem pouco a perder se isso lhe
valer mais um olho inchado".
A essa linha de argumentação rigorosamente econômica, pode-se e
deve-se acrescentar outra de mais
alta hierarquia moral. Tanto o
FMI quanto o Banco Mundial têm
hoje, como objetivo central, a erradicação da pobreza, afirmando
que a meta é perfeitamente compatível com a política macroeconômica que recomendam. O caso argentino é um teste importante dessa declarada compatibilidade.
Graças à reservas, o governo Duhalde logrou ultimamente estabilizar a moeda em torno da cotação
de 3,5 pesos por dólar (melhor que
a nossa). Melhorou um pouco, assim, a situação dos mais vulneráveis, pois a "cesta de subsistência",
extremamente dependente do
câmbio (quase todos os componentes são alimentos exportáveis: carne, trigo, azeite, etc.), começou a
apresentar relativa estabilidade
após encarecer 70%, desde outubro
de 2001.
O governo tomou outras medidas para aliviar a situação. Por
exemplo, suspendeu primeiro por
30 dias, prorrogados por três meses,
a repossessão pelos credores dos
imóveis hipotecados em atraso;
adicionalmente, só aceitou conceder 10% de reajuste às tarifas de
serviços públicos privatizados, em
vez dos 30% a 50% reclamados pelos concessionários e os 30% desejados pelo FMI. Essas decisões estão sendo contestadas pelo Fundo
em nome de princípios doutrinários, igualmente invocados para
exigir um saldo primário fiscal de
2,5%. Como se esses princípios teoricamente "corretos" pudessem ser
aplicados num país com brutal encolhimento do PIB (menos 15%
desde o ano passado), onde as pessoas abaixo da linha de pobreza
nos centros urbanos somam 53%
(70% no nordeste argentino) e os
abaixo do nível de subsistência são
25% nacionalmente e 39% no nordeste (dados oficiais do Indec até
maio).
Até que ponto será possível esticar a corda em nações como a Argentina e o Uruguai, em recessão
há mais de quatro anos, indo para
cinco, sem que ocorra convulsão
social de grandes proporções? Outros países da região serão mesmo
"ilhas" ou "oásis" de exceção, como se diz, ou a diferença está mais
na data em que começou a recessão, sendo o resto questão de tempo?
Para um povo, recessão desse tipo, sem perspectivas de acabar, é
como morrer aos poucos, mergulhar em interminável agonia. Não
será então melhor dar um sentido
à agonia? Que melhor sentido do
que deslocar a questão do terreno
financeiro para o social, para o da
sobrevivência dos pobres e vulneráveis?
Na carta escrita ao filho ao receber a injusta sentença de morte, o
anarquista Bartolomeo Vanzetti
dizia que poderia ter morrido despercebido, ignorado, um fracasso,
não fosse a injustiça da acusação.
Nunca, em toda a vida, ele e Sacco
poderiam ter esperado fazer tanto
pela tolerância, pela justiça, pela
compreensão entre os homens como devido a esse acidente. Diante
disso, nada eram suas palavras,
suas dores, a entrega de suas vidas
-a vida de um bom sapateiro e de
um pobre vendedor de peixes. E
terminava: "Esse último momento
pertence a nós- essa agonia é o
nosso triunfo".
Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
E-mail -
rubensricupero@hotmail.com
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