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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Transmissão, divergências e transparência
ALOIZIO MERCADANTE
A vitória consagradora de
Lula nas eleições representou
uma demonstração inequívoca da
vitalidade da democracia brasileira. O clima de otimismo, deflagrado por esta eleição, quando a esperança derrotou o medo, permitiu
iniciativas inéditas na história política do país.
Em primeiro lugar, a convocação
de um pacto social com a participação ampla dos mais diversos
segmentos do empresariado, das
centrais sindicais e de entidades
não-governamentais. A criação de
um futuro Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social abre
um novo espaço de articulação da
sociedade civil e um canal para a
formulação de políticas públicas
com ampla participação da sociedade.
Igualmente importante foi a definição de um processo negociado
de transição política. A constituição de um grupo de técnicos do novo governo que está tendo acesso a
dados e a informações relevantes
para a definição das novas políticas públicas também é um importante avanço institucional e um reflexo do amadurecimento democrático do Brasil -inovação que
os presidentes Fernando Henrique
Cardoso e Lula deixam para o futuro do país.
Apesar de todos esses avanços, o
presidente FHC e outras autoridades do governo têm afirmado, reiteradamente, que o país está pronto para reduzir as taxas de juros e
ingressar em uma trajetória de
crescimento sustentado. Em viagem ao exterior, o presidente afirma que nem fome existe no país,
apenas a subnutrição localizada, e
ministra aulas de como o novo presidente deveria agir. Ou seja, o próximo governo herdará um país em
ótimas condições econômicas e sociais e, portanto, será de sua exclusiva responsabilidade qualquer desequilíbrio ou problema que se
apresente.
É difícil entender essas afirmações no atual contexto. Para começar, a taxa de juros que se diz pronta para cair foi aumentada recentemente em três pontos percentuais
-de 18% para 21%. A taxa de
câmbio, mesmo com a queda após
a eleição de Lula, mostra valorização do dólar de quase 60% em relação a dezembro passado. A relação dívida/PIB não só está muito
acima dos limites fixados como
tem aumentado sustentadamente
ao longo do ano. E a inflação
-que nos últimos dois anos sempre ficou acima das metas estabelecidas nos acordos com o FMI, coisa
que também ocorrerá neste ano-
está fortemente represada, como
apontam o Índice de Preços por
Atacado e o Índice Geral de Preços
do Mercado, da Fundação Getúlio
Vargas, índices cujos aumentos no
ano já atingiram 19,88% e 14,82%,
respectivamente. Para não falar no
medíocre crescimento do PIB (estimado em 1,5% para 2002), no péssimo desempenho da indústria e
no elevado nível de desemprego,
beirando os 20% em São Paulo e
infelicitando um contingente de
aproximadamente 11,7 milhões de
trabalhadores em todo o país, expostos à pobreza e à fome, especialmente na região Nordeste.
Ao mesmo tempo aumentam as
pressões, internas e externas, para
a continuidade da atual política
econômica. Aparentemente, estão
todos empenhados em manter os
"avanços" decorrentes das "políticas sólidas" praticadas pelo governo FHC. As mesmas políticas que
conduziram à desvalorização do
real em janeiro de 1999, com enormes custos econômicos e sociais para o país, e que, posteriormente,
atrelaram a economia brasileira
ao FMI, submergindo-a em uma
crise permanente, que se vem agravando desde outubro do ano passado.
Alguns números ajudam a entender o porquê da insistência na
continuidade do atual modelo econômico. De 1995 a 2001, o Brasil
amortizou US$ 206,7 bilhões de
sua dívida externa, que, no entanto, cresceu US$ 61,6 bilhões no mesmo período. O passivo externo total, que, além da dívida externa,
inclui o aumento do estoque de capital estrangeiro no país, aumentou em US$ 202,3 bilhões. Nesses
sete anos, entre juros e lucros e dividendos, remetemos US$ 140 bilhões para o exterior. As transferências patrimoniais, via privatização de empresas públicas, somaram, no período, US$ 93,4 bilhões,
dos quais US$ 45,1 bilhões correspondem à participação do capital
estrangeiro. A dívida mobiliária
federal aumentou, em termos nominais, em R$ 562,3 bilhões, dos
quais R$ 373,4 bilhões correspondem à conta de juros do governo
central. O lucro dos bancos aumentou 355% nesse período.
Faltaria agregar a esses números
os dados relativos à atual crise
cambial. Sobre esta há alguns indicadores parciais ilustrativos: somente em setembro passado os
bancos obtiveram ganho de R$ 1,4
bilhão nas operações com títulos
cambiais, e o Banco Central perdeu R$ 8,9 bilhões em operações no
mercado futuro. Alguns investidores ficaram sócios da desvalorização e faturaram cerca de R$ 5 bilhões, segundo estimativas da Receita Federal. Além disso, a elevação da taxa de câmbio e da taxa de
juros agregou algumas dezenas de
bilhões de reais à dívida pública federal.
Como é evidente para os que
aplicam no mercado financeiro
daqui e, principalmente, de fora, as
políticas adotadas nesses quase oito anos foram extremamente positivas. Têm razão, então, em querer
a sua continuidade. Para a produção, que apresentou taxa média de
crescimento de apenas 2,3%, perdeu participação no comércio externo, assistiu ao atraso nos investimentos em setores estratégicos da
infra-estrutura e dos serviços públicos e ainda se tornou dependente do FMI, essas políticas foram extremamente destrutivas. Além de
desestruturar e desnacionalizar a
economia, agravaram a enorme
dívida social que o país arrasta
desde sua formação histórica, elevando o desemprego a níveis sem
precedentes, condenando à pobreza mais de 50 milhões de brasileiros e aumentando ainda mais as
desigualdades sociais preexistentes. Tão democrático como a transição negociada é expressar com
transparência as profundas divergências que nos separam.
A crise que vivemos é de responsabilidade quase exclusiva do
atual governo, e não se resolverá de
um dia para o outro. Ao contrário
do que sugerem as autoridades
econômicas que estão terminando
o mandato, as restrições existentes
nas esferas cambial, monetária e
fiscal projetam-se como uma sombra sobre o futuro do país e exigirão um notável e coordenado esforço de toda a sociedade para superá-las e para que se possa avançar na solução, inadiável, da questão social. O país tem vitalidade,
capacidade e recursos para vencer
esses obstáculos. Isso, no entanto,
requer a mudança do atual modelo econômico. E o clima de otimismo e de esperança que nasce desse
encontro inédito entre o Palácio do
Planalto e as ruas, governo e movimentos sociais, está fundado no
compromisso de mudança com
responsabilidade que o presidente
Lula representa. Mudar, mudar
com profundidade o Brasil.
Aloizio Mercadante, 48, é economista e
professor licenciado da PUC e da Unicamp, deputado federal por São Paulo e
secretário de Relações Internacionais do
Partido dos Trabalhadores.
Internet: www.mercadante.com.br
E-mail -
dep.mercadante@camara.gov.br
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