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LUÍS NASSIF
As referências de vida
Às vezes vejo meu pai em
mim, às vezes minhas mãe,
às vezes meu avô. Às vezes me vejo impregnado do exemplo de algum amigo ocasional. Somos um
imenso mosaico de referências
acumuladas ao longo da vida, especialmente na infância e na
adolescência.
Minhas primeiras referências
foram meus pais. Mas também
meu tio João, único homem entre
os dez filhos de vô Issa. Quando
ele ia visitar meus avós em Poços,
eu, com cinco ou seis anos, corria
para a casa deles e ficava esperando sentado na porta de seu
quarto até ele acordar.
Um dia passava em frente ao
Hotel Santos e assisti a um vendedor de bilhete, velho, ser chutado
por dois turistas. Fiquei indignado e, quando cheguei à casa de vô
Issa, pedi que tio João fosse até lá
enquadrar os agressores. Fiquei
decepcionado quando alguma tia
me lembrou de que tio João era
grande, mas não era dois. E eu
que o considerava o maior do
mundo...
A referência maior sempre foi
meu avô Issa, udenista dos brabos e dono do Bar e Restaurante
Serigy, onde, em um dia da semana, se reunia o diretório da UDN,
e, em outro, o do PSD.
Pai de dez filhos, entre os quais
nove filhas ciumentas, avô de
mais de 20 netos, vô Issa conseguia o feito de cada qual se considerar seu preferido. Nunca conheci na vida pessoa com maior
carisma. Nem eu nem qualquer
um que o tenha conhecido.
Durante muitos anos, a característica que eu mais prezava era
o destemor que vô Issa demonstrava nos palanques. Não foi à
toa que meus ídolos na infância
foram Kid Colt e Carlos Lacerda.
Com o tempo, a referência dominante passou a ser a coragem silenciosa e sem jactância de um
dom Paulo Evaristo Arns.
Olhando para trás, vejo que outra característica que sempre me
impressionou foi o discernimento.
Foi essa característica que vi em
João, que jogava bola com a gente
no São Benedito. Nem me lembro
mais do seu sobrenome. Lembro
que era judicioso. Acho que foi a
primeira pessoa, fora de casa, em
quem encontrei essa tremenda
qualidade humana: ser judicioso.
Eu ficava encantado com sua
segurança e discernimento. Um
dia seu cachorrinho entrou em
um cercado que havia na caixa
d'água que existe no largo do São
Benedito. O zelador passou a cobrir o cachorro de pauladas. João
assistia impassível. Olhávamos
para ele, desnorteados, e ele:
"Deixa, o cão mereceu". Quando
achou que o sujeito estava exagerando, levantou-se e caminhou
em sua direção, com aquele andar lento de John Wayne. O sujeito, velho, parou de bater e liberou
o cachorro. João me pareceu, naquele momento, o sujeito mais
sábio e influente do mundo. Era
um moleque alguns anos mais
velho do que eu. Mas dominou o
adulto apenas com sua capacidade de discernimento.
Muitas vezes assisti a grandes
empresários ou políticos influentes tomando decisões meio à galega. Na condição de quem conviveu e convive com eles e conviveu
com João, posso afiançar: o seu
índice de discernimento era muito superior ao da média dos homens poderosos, apesar de praticado em pequenos episódios da
infância.
Das referências familiares, tenho ainda as tias. Do lado de
mãe, não posso mencionar todas,
porque oito é muito, e não posso
mencionar algumas, porque vai
rolar ciumeira. Sobrinho mais velho, filho da irmã mais querida,
me cobriram de mimos a infância
e a vida toda. Ainda hoje cada
qual sabe meu prato predileto, o
arroz de forno, o arroz "querido"
(como eu chamava o arroz amarelo), a maionese especial, o frango ensopado.
Mas minha referência maior de
ternura foi tia Rosita, irmã de
meu pai, que até o final da vida
conservou seu sotaque argentino.
Nas crises da adolescência, ia me
refugiar na sua casa, me reconfortar com sua presença, naqueles olhos de cobertor, que, sem nada dizer, cobriam de ternura minha solidão.
Quando Bibi começou a falar,
com um ano e pouco, a fala veio
acompanhada de um sotaque gozado. Perguntei a Fátima, minha
irmã, quem o sotaque lembrava.
A Fátima arregalou os olhos:
"Nossa, a tia Rosita". Esse olhar
continua me acompanhando pelas batalhas da vida.
E-mail -
Luisnassif@uol.com.br
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