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OPINIÃO ECONÔMICA
Olho neles
RUBENS RICUPERO
Não é de minha índole fazer
denúncias, mas sinto-me no
dever de alertar os membros do
Congresso e os candidatos que
acaso me leiam para grave fato
que está sendo tramado nas negociações da Alca, sem que a opinião nacional conheça os detalhes e suas implicações irreversíveis.
Em recente passagem pelo Brasil, soube que os negociadores
brasileiros receberam instruções
para aceitar como ponto de partida nas negociações tarifárias não,
como é usual, o nível da tarifa
consolidada na OMC, mas o nível
efetivamente cobrado pelo país.
Para compreender o que isso significa, é bom que se saiba que todo país se obriga, na OMC, a não
ultrapassar um certo patamar na
tarifa aplicada a cada produto. É
essa obrigação legal, que não pode ser violada, que se chama de
tarifa consolidada -em inglês
"bound", ou "amarrada". Na
prática, contudo, os governos com
frequência reduzem a tarifa por
razões de conveniência, conservando a consolidada como válvula de segurança. A utilidade de tal
procedimento viu-se recentemente confirmada pelo ocorrido no
auge da crise argentina, quando o
ministro Cavallo, não podendo
mexer no câmbio, elevou todas as
tarifas de importação argentinas
até o máximo consolidado na
OMC, que, no caso, era de 35%.
Esperava, assim, aliviar o rombo
na balança comercial. É óbvio
que a base normal das negociações tem de ser a tarifa consolidada, a única com existência legal e
imutável, enquanto a tarifa praticada pode variar ao sabor das circunstâncias. Por pressão dos
americanos, propôs-se, todavia,
na Alca, adotar a tarifa efetivamente praticada em determinada
data, e o Brasil, para espanto dos
negociadores experimentados,
aceitou isso -o que quer dizer,
por exemplo, que, ao negociar a
redução de tarifas em produtos
que tenhamos consolidado no pico, em lugar de partir de 35%
(justamente os produtos que queremos ou precisamos proteger
mais), seremos forçados a começar, digamos, de 12% ou 10%. Em
outras palavras, estamos entregando de mão beijada (lembram-se do famoso gesto atribuído a
Mangabeira durante a visita do
general Eisenhower?) de 23 a 25
pontos percentuais!
Poderíamos até compreender
essa complacência submissa se
navegássemos em mar de rosas,
como a China, que tem polpudos
saldos comerciais e, no balanço de
pagamentos, opulentas reservas,
nada tendo a temer da volatilidade financeira internacional, dos
perversos humores das agências
de avaliação de crédito ou dos
mercados estrangeiros. Será necessário provar que é exatamente
o contrário o que nos caracteriza?
Outra hipótese para justificar a
docilidade acomodatícia seria os
nossos principais parceiros, os
norte-americanos, estarem emitindo claros sinais de que se dispõem a abrir-nos as portas do seu
mercado ao aço, ao suco de laranja, ao açúcar, ao etanol, às carnes
e ao tabaco, isto é, aos produtos
em que somos indiscutivelmente
competitivos em preço e qualidade.
Ora, é precisamente o oposto o
que se dá no momento em que, a
cada semana ou quinzena, somos
bombardeados por novos atentados ao livre comércio. Primeiro,
foram as salvaguardas contra o
aço, que paralisam o crescimento
da participação do Brasil em nosso principal mercado. Em seguida, foi a vez da lei agrícola, cujos
subsídios de dez anos de duração
garantem a perpetuação da concorrência desleal contra a soja, o
açúcar, o etanol, os sucos, o tabaco e o algodão. Dias atrás, a
emenda aprovada no Senado à
TPA (Trade Promotion Authority) excluiu efetivamente das negociações na Alca ou na OMC
qualquer correção ou atenuação
dos instrumentos de defesa comercial (antidumping, direitos
compensatórios, salvaguardas)
de que temos sido uma das vítimas privilegiadas desde os anos
60 e 70 (calçados, têxteis, aço etc.).
Para não me acusarem de exagero, lembro que a primeira autoridade americana em comércio internacional, o sr. Robert Zoellick,
assinou com seus colegas da Secretaria de Agricultura e de Comércio carta alertando o Senado
de que, na eventualidade de ser
aprovada a emenda, ver-se-iam
forçados a recomendar ao presidente que vetasse a TPA. Esta já
vinha viciada da Câmara com
dispositivo sem precedentes, obrigando os negociadores americanos a tortuoso e complicado procedimento de consultas a numerosas comissões da Câmara e do
Senado para inviabilizar qualquer redução na proteção de que
gozam os produtos mais sensíveis.
Em número de 297 são aqueles
em que os EUA consolidaram a
menor diminuição possível na
Rodada Uruguai (15% ao longo
de seis anos). Incluem todos os
produtos de interesse prioritário
para o nosso país (os listados acima). A Comissão de Finanças do
Senado aumentou ainda a lista
para 340 itens.
Diante disso, quando me perguntam se devemos nos retirar
das negociações ou abrirmos mão
do mercado externo, respondo
que não, que temos de continuar
a negociar com boa-fé, paciência
e determinação, na esperança de
que, passado o ano eleitoral, os
americanos retornem a suas melhores tradições. Não podemos esquecer, sob pena de cometer grave
injustiça, que, fora os casos discutidos, felizmente limitados, os
EUA continuam a ser um dos
mercados mais abertos do mundo. Exceto, desgraçadamente, nas
áreas onde se concentra nossa restrita competitividade. Só podemos esperar, porém, modificar essa posição se defendermos nossos
interesses de forma decidida, como fizemos na Rodada Uruguai.
Naquela ocasião, por duas vezes,
em Montréal (1988) e em Bruxelas (1990), interrompemos o processo negociador ao nos negarmos a compactuar com um resultado que excluía qualquer avanço em agricultura. Todos hoje reconhecem que, se não fosse isso,
mesmo a magra colheita daquela
rodada não se teria materializado. É por isso que não entendo
por que estamos cedendo sem ganhar nada em troca, comprometendo a possibilidade de arrancar
concessões na base da firmeza, como fazem os americanos.
Nesse quadro, por que se omite
o Congresso Nacional? Por que, a
exemplo do seu congênere do
Norte, não faz uso de suas prerrogativas para acompanhar a negociação, antes que seja tarde? E os
candidatos saberão acaso que,
duas semanas após a posse do novo presidente, haverá reunião da
Alca na qual todas essas decisões
se tornarão irreversíveis? O que
tencionam fazer a respeito? E o
presidente Fernando Henrique
Cardoso estará ciente de que seus
principais auxiliares na direção
das negociações estão a impor aos
negociadores posições que violam
o espírito e a letra do seu corajoso
discurso de Québec?
Não sei se minhas perguntas encontrarão resposta -e desde já
me penitencio se for provado que
estou errado. Mas, lembrando a
expressão de que gostam os nossos vizinhos, permito-me recomendar "ojo" ou, em vernáculo,
olho nos que impõem aos negociadores posições que nos condenam à derrota enquanto é tempo
de salvar a prata da casa, se é que
nos deixaram alguma.
Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
E-mail -
rubensricupero@hotmail.com
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