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LUÍS NASSIF
Os 71 de Curitiba
Eu conheço uma estatística de carne e osso. É um anjo de três anos, de nome Sofia.
Viva, inteligente, amorosa, linda como uma deusinha eslava.
Quando indagada sobre o que
gostaria de ganhar de Papai
Noel, responde: "Umas plaquetas".
Há alguns meses foi detectada
doença rara que come seus leucócitos. Sofia passou a ser freguesa permanente de transfusão de sangue, hóspede permanente da hemorragia. Acostumou-se tanto à nova situação
que, mal chega à enfermaria, já
estende os bracinhos e não chora quando é picada pela seringa. Nem isso diminuiu o ritmo
de atividade e o raciocínio vivo.
Em meados do ano suas plaquetas diminuíram muito, e o
médico, em Belo Horizonte,
atestou doença raríssima e lhe
deu pouco tempo de vida.
Começou aí a grande luta
contra o tempo para salvar Sofia. Como em uma ampulheta,
a cada dia que passa diminui a
quantidade de leucócitos de seu
sangue. A cada dia a avó escarafunchava a internet à procura de explicações para a doença.
A cada dia, o avô, físico e cientista respeitado, tentava encontrar especialistas no mundo que
aceitassem vir ao Brasil para fazer pesquisas, passear, qualquer
que fosse o motivo, contanto
que pudesse examinar Sofia.
Montaram um site na internet, colocaram a foto e todos os
exames de Sofia para que os especialistas estrangeiros pudessem analisar o caso e ajudar no
diagnóstico.
Uma tia localizou um especialista na doença no Hospital do
Câncer, de São Paulo, médico
humano, interessado. Aqui,
criou-se uma rede de solidariedade comovente e competente.
Um seminário internacional sobre a doença, coincidentemente
por aqueles dias, colocou à disposição de Sofia uma junta médica internacional.
Não era a doença que se receava, mas outra ainda mais
rara. Novas rodadas de exame,
nova feliz coincidência de um
seminário internacional com
especialistas da nova doença e,
finalmente, se chegou ao diagnóstico: a saída seria um transplante de medula.
Amigos da família distribuíram fotos e e-mails pela internet, solicitando às pessoas que
fizessem o teste de medula, para
encontrar alguma compatível.
O movimento sensibilizou pessoas em São Paulo e em Belo
Horizonte. O Brasil real exercitava a solidariedade dos doadores e a competência da medicina brasileira.
No seminário em São Paulo
estava o dr. Pasquini, que tornou a Santa Casa de Curitiba
referência nacional de transplante de medula. A família se
mudou para Curitiba para a
corrida final que salvaria Sofia.
Como Sofia não tem irmãos,
começou a pesquisa em bancos
internacionais de medulas. A
probabilidade de encontrar um
doador compatível, não sanguíneo, é muito rara, mas as primeiras pesquisas identificaram
doadores potenciais.
Mas aí ela virou estatística, virou superávit fiscal. No começo
do ano, o ministro da Fazenda
decidiu, espontaneamente, oferecer um superávit fiscal primário de 4,25% para acalmar o
mercado. E o presidente do
Banco Central jogou os juros
nas alturas para não correr risco na sua missão. Acabou o dinheiro do SUS, acabou o dinheiro da Santa Casa, e a maratona
de Sofia foi interrompida pela
falta de recursos.
Hoje ela é uma estatística na
Santa Casa de Curitiba: é um
dos 71 pacientes à espera de um
transplante de rins, que não
têm irmãos para doar. Os recursos foram suficientes para apenas dois transplantes. Agora,
interromperam-se as pesquisas,
e os grãos da ampulheta escorrem mais depressa pelas veias
dos 71 mártires desse superávit
fiscal.
Por aqueles dias, a imprensa
comemorava o feito extraordinário, o empenho vigoroso do
ministro da Fazenda, médico, e
do presidente do Banco Central,
portadores de velhos sofismas,
aos quais se conferiu o destino
de tantos milhões de brasileiros,
de tantos milhares de Sofias.
O mercado se debruçou sobre
indicadores tipo risco Brasil, falou em meta de inflação e comemorou. No meio da festa, não
havia tempo nem interesse para
se preocupar com indicadores
de segunda classe, essa irrelevância de contar os brasileiros
que tombaram e tombarão pelo
caminho para que a meta se
cumpra.
Mesmo que essa estatística tenha a cara de um anjo eslavo,
de nome Sofia, e seus 70 companheiros.
E-mail -
Luisnassif@uol.com.br
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