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OPINIÃO ECONÔMICA
Paz na Terra
RUBENS RICUPERO
Haverá guerra e rumores
de guerra. Era só, em resumo, o que se podia ler nos jornais
de 11 deste mês: ocupação de Bagdá, caos e desordem, saques sistemáticos, pilhagem do museu, da
biblioteca e dos hospitais, crianças e mulheres massacradas a bala, a bombas, mutiladas física e
psicologicamente, ameaças à Síria. Em lugar nenhum encontrei a
mais breve alusão ao que havia
acontecido naquela data 40 anos
antes: a assinatura da encíclica
"Pacem in Terris", que tanto impacto teve no mundo e até no
Brasil, cuja própria guerra interna começaria menos de um ano
depois.
Não que a encíclica tenha alterado de alguma maneira o desastroso curso dos acontecimentos
na Terra. A década de 60 se inaugurara com duas crises gravíssimas, inspiradoras prováveis do
documento papal: a dos mísseis
em Cuba, que por um triz não detonou o Armagedon nuclear, e a
da construção do Muro de Berlim, o mesmo que, ao ser demolido, em 1989, marcaria o fim do
comunismo e da Guerra Fria.
Tendo-se conseguido evitar o pior
nessas ocasiões, a esperança de
uma paz durável se realimentou
com a liderança de Kruschev, errática, contraditória às vezes,
mas menos ameaçadora do que a
de Stálin. As duas superpotências
líderes do mundo bipolar da época tiveram a prudência de evitar
o confronto direto porque ele lhes
teria acarretado a destruição mútua. Isso não impediu que elas
continuassem a afrontar-se por
procuração, em conflitos localizados, como o do Vietnã, no qual
iriam afundar-se progressivamente os americanos naquela segunda metade dos anos 60.
Parecia, assim, um sonho falar
de paz no momento em que o
equilíbrio do terror unificava o
consenso em torno da fórmula lapidar de Raymond Aron: "Paz
impossível, guerra improvável".
Enquanto esperava "com simplicidade e alegria", conforme escreveu, que a "irmã morte" o levasse
dois meses depois, João 23 escolheu a paz como tema de sua derradeira mensagem. A paz dependia, para ele, de quatro condições,
que se confundiam com as exigências básicas do espírito humano: a verdade, a justiça, o amor e
a liberdade. A verdade implica a
tomada de consciência honesta
não só dos direitos de cada um
mas de seus deveres em relação
aos outros. A justiça é traduzir essa consciência no respeito concreto aos direitos alheios e no cumprimento pleno dos deveres para
com o próximo. O amor vai mais
longe: exige considerar as necessidades dos demais como se fossem
as próprias e partilhar com eles o
que se possui, a começar dos valores do espírito. A liberdade, enfim, pressupõe assumir com coragem a responsabilidade dos próprios atos na escolha dos meios
para construir a paz.
O papa revelou, dias mais tarde,
por que havia desejado dar à encíclica a data da Quinta-Feira
Santa. Era o dia no qual Cristo,
sabendo que ia morrer, disse estas
palavras, em testamento, a seus
discípulos: "Eu vos deixo a paz, eu
vos dou a minha paz" (Jo, 14,27).
Angelo Giuseppe Roncalli agonizava também no Vaticano quando Hannah Arendt ouviu da camareira do hotel perguntas curiosas: "Signora, este papa era um
verdadeiro cristiano. Como foi
possível que um verdadeiro cristiano pudesse chegar à cadeira de
são Pedro? Ele não tinha primeiro
que ser nomeado bispo e cardeal?
Será que ninguém sabia quem ele
era?". Na boca do povo italiano,
"cristiano" se traduziria melhor
como "evangélico" no sentido de
Francisco de Assis e de outros
"loucos de Deus", capazes da insensatez de levar a sério o Evangelho como um "programa de vida radical" (título do livro do
saudoso frei Mateus Rocha OP).
Com a sabedoria de milênios de
história, os italianos têm poucas
ilusões sobre os homens de poder
-no governo ou na igreja. É por
isso que dizem "Roma veduta, fede perduta", isto é, que o espetáculo da Cúria Romana costuma
ser o escândalo destruidor da fé
mais pura. Arendt comenta que a
resposta às perguntas da camareira deveria ser negativa. A prova é que o alfaiate do Vaticano
não tinha previsto a roupa papal
no tamanho robusto do camponês Roncalli. Ninguém esperava
que ele acabasse escolhido para
desempatar o conclave e, mesmo
isso, apenas como solução transitória e irrelevante.
Escrevo numa outra Quinta-Feira Santa e releio o discurso de
adeus de Jesus. A frase que citei
continua: "Eu vos deixo a paz, eu
vos dou a minha paz. Não é à maneira do mundo que eu vos dou a
paz". Há, portanto, dois tipos de
paz: a do mundo e a do espírito.
De fato, no Antigo Testamento,
paz é muito mais do que ausência
de guerra ou desordem. "Shalom"
exprime a plenitude, um perfeito
estado de bem-estar, saúde, felicidade. É o modo habitual de dizer
"bom-dia" e "até logo" em Israel e
nos países árabes, muçulmanos.
Em português, salamaleque vem
daí, do árabe as-salam-'alaik
-"a paz esteja contigo". É significativo que hebreus e árabes, irmãos semitas inimigos, utilizem
para saudar-se a mesma aspiração comum de paz. Será demais
esperar que um dia, de tanto desejá-la uns aos outros dentro do
próprio grupo, acabem também
por encontrá-la em relação aos
vizinhos?
A paz interior, que vem de
Deus, não deve levar ao desinteresse, à indiferença ante a desordem e a guerra no mundo. Na relação das bem-aventuranças,
uma proeminente é reservada aos
que realizam obra de paz: eles serão chamados filhos de Deus.
Existe, assim, um dever categórico de promover a paz, de não
abandoná-la, salvo nas circunstâncias mais extremas. O que
chocou justamente nesta guerra
contra o Iraque foi a gratuidade,
a desnecessidade de um remédio
desproporcional à magnitude do
problema que se supunha resolver. Consola de algum modo que
as religiões se tivessem recusado a
servir de instrumento para justificar o injustificável. Ortodoxos,
protestantes, católicos, todos se
uniram em indignação que se estendeu do arcebispo de Canterbury, na Igreja Anglicana, a todas
as denominações protestantes nos
EUA, inclusive a Igreja Metodista
Unida, do presidente, com a única exceção dos batistas do sul. Na
incansável denúncia dessa infortunada guerra, ninguém foi mais
profético e veemente do que João
Paulo 2º, que não hesitou em advertir os dirigentes de que eles terão um dia de prestar contas a
Deus por uma guerra capaz de
"pôr em perigo o destino da humanidade". Criticou-se muitas
vezes Pio 12 por não ter sido suficientemente profético em denunciar de público o hediondo Holocausto dos nazistas contra os judeus. Ninguém sabe se isso teria
evitado o pior. No caso atual, sabemos que a tomada de posição
dos líderes religiosos teve pouco
ou nenhum efeito na mídia e nos
governos belicistas, que se comportaram como se repetissem a
pergunta de Stálin: "Afinal, de
quantas divisões dispõe o papa?".
Os apelos foram em vão, da
mesma forma que ficaram sem
eco as advertências de todos os
profetas. Inclusive as desse bem-humorado e despretensioso João
23, que morria em Roma dizendo:
"Qualquer dia é bom para nascer,
qualquer dia é bom para morrer".
No eterno ciclo de nascimento e
morte, de morte e ressurreição, a
Páscoa é essa passagem penosa,
mas necessária. Ao evocá-la, neste dia, quero dirigir aos meus leitores as palavras com que Jesus
ressuscitado foi reconhecido por
seus amigos: "A paz esteja convosco".
Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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