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OPINIÃO ECONÔMICA
Mensagem ao nosso povo
RUBENS RICUPERO
"Devemos aceitar a crescente internacionalização dos circuitos monetários e financeiros, com a conseqüente
perda de autonomia das decisões,
e fazê-lo numa fase em que o protecionismo dos países centrais se
reafirma? Teremos de renunciar
a uma política de desenvolvimento? Que conseqüências sociais devemos esperar de uma prolongada redução na criação de emprego?"
Escritas com penetrante clarividência por Celso Furtado em
1982, hoje, passados 21 anos do
início da crise da dívida e da década perdida, essas frases só exigem insignificante modificação: a
retirada dos pontos de interrogação. Quem duvida ainda de que
aceitar a internacionalização financeira conduz à perda de autonomia das decisões? Haverá
quem insista em crer na possibilidade de ter política de desenvolvimento ou de ver em breve o fim
do protecionismo agrícola dos ricos?
Quanto às conseqüências sociais do persistente encolhimento
do emprego, basta olhar para as
monstruosas chacinas em presídios superlotados para compreender que o país se afunda na desumanidade e na barbarização. É a
revanche dos degolados de Canudos, a barbárie que se impõe a
uma "civilização" pervertida.
A citação acima fez parte do
texto com que a Unctad homenageou Celso Furtado na abertura
de sua conferência em São Paulo.
Nada mais apropriado, posto que
a Unctad partilha com Celso a sina que Maquiavel predestinava
aos profetas desarmados: a de terem razão, mas não serem escutados. Aliás, outra das características que a obra furtadiana tem em
comum com os profetas é o sopro
poético, o poder de fixação e evocação dos títulos: "A Fantasia Organizada", "A Fantasia Desfeita", "Os Ares do Mundo", "A
Construção Interrompida".
Depois de respirar esses ares de
inteligência crítica, sufoca-se por
falta de oxigênio na estratosfera
rarefeita em que se teima em
manter os juros no país no qual a
remuneração dos empréstimos
chega a quase um décimo da riqueza produzida. Nessas condições, como esperar que haja investimento suficiente para permitir crescimento sustentável?
Ao receber na conferência a visita de jovens empresários, falei-lhes do que acontece quando se
tolera a escravização aos mercados financeiros. Meio século
atrás, no momento em que eu
chegava à universidade, no ano
da eleição de Juscelino, um diploma universitário era praticamente a garantia de bom emprego. Tinha-se a paixão do desenvolvimento, acompanhava-se o cumprimento da meta de produção de
barrilha e soda cáustica, de aço e
alumínio, com o interesse que ora
se dispensa aos pontos do risco da
dívida brasileira ou às opacas deliberações de um conselho monetário cinzento e anônimo.
Admirava-se a história dos empreendedores, dos capitães de indústria, que se faziam por esforço
próprio, gerando emprego, criando riqueza. Onde estão agora os
líderes industriais novos, como
era Antônio Ermírio naquela
época, os empresários animados
de "animal spirit" para afrontar
riscos e construir, com invenção e
coragem, uma economia que dê
trabalho a todos?
Esses líderes já não existem porque, conforme apontava a "Economist" em dossiê de início de
1995 sobre o Brasil, os talentos
mais brilhantes, os Ph.D.s em
Harvard ou Cambridge vão não
para onde o país mais precisa -a
indústria, a produção, o governo
inteligente-, mas para a especulação financeira. É lá que se encontra o dinheiro fácil e rápido,
que esteriliza os melhores e os afoga em riqueza cuja necessária
condição é o desemprego e a desgraça para milhões de seus compatriotas. É por essa perversidade
que os mercados deliram de exuberância quando o desemprego se
agrava e os juros sobem. Quando
a pátria está metida no gosto da
cobiça, queixava-se Camões, não
há mais favor para a invenção e a
cultura, mas só uma apagada e
vil tristeza.
Um dos poucos que restam dos
combatentes da FEB, Celso teve
vida cheia e longa o bastante para recordar dias mais luminosos.
A saúde não lhe permitindo viajar, enviou mensagem gravada
com a voz que primeiro se fez ouvir no ar seco e áspero de Pombal,
no coração do sertão paraibano,
impregnando-o para sempre da
paisagem austera: "Eu sou como
o cacto", na autodefinição lacônica e de cheiro de terra calcinada.
Lembrou-nos que "a dimensão
política do processo de desenvolvimento é incontornável, qualquer que seja o exercício analítico, que se parta de uma visão microeconômica ou macroeconômica". Prosseguiu mostrando que "o
avanço social dos países que lideram esse processo não foi fruto de
uma evolução automática e inercial, mas de pressões políticas da
população". São essas, acentuou,
"que definem o perfil de uma sociedade, e não o valor mercantil
da soma de bens e serviços por ela
consumidos ou acumulados".
"O verdadeiro desenvolvimento
-não o "crescimento econômico"
que resulta da mera modernização das elites- só pode existir ali
onde houver um projeto social
subjacente." Onde estará o nosso
projeto?, interpela-nos a voz de
Celso Furtado. Ele não pode, é óbvio, resumir-se à luta contra a fome. Será possível construir autêntico projeto de "promoção de todos os homens e do homem como
um todo" sobre a base dos contravalores do cassino financeiro?
A bela definição de Maritain,
enxuta como as sentenças de Celso, encerra dois conceitos. O primeiro é a universalidade do processo de inclusão, a igualdade
sem discriminações entre todos os
seres humanos. O segundo é sua
qualidade, o ser humano na totalidade inseparável de necessidades materiais e de aspirações de
educação, beleza, cultura, valores
simbólicos e relações com os outros.
Serão essas metas compatíveis
com um mercado que exclui e
avilta, que marginaliza e abastarda? Ou "é só quando prevalecem as forças que lutam pela efetiva melhoria das condições de vida da população que o crescimento se transforma em desenvolvimento"? Essa é, acima de todo o
demais, a mensagem principal
que Celso Furtado e a 11ª Conferência das Nações Unidas sobre
Comércio e Desenvolvimento, recém-encerrada em São Paulo, dirigem ao nosso povo e a todos os
que crêem que um outro e melhor
mundo é possível.
Rubens Ricupero, 67, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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