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OPINIÃO ECONÔMICA
Como vender geladeiras aos pinguins
RUBENS RICUPERO
Na última vez em que autoridade americana fez ironia
com o pólo Sul, o tiro acabou
saindo pela culatra. Lembro bem,
pois estava na embaixada em
Washington, em pleno escândalo
de Watergate. Acusado de haver
utilizado a CIA e empresas como
o ITT para financiar o golpe de
Pinochet, Kissinger resolveu ridicularizar o motivo estratégico
atribuído à operação. "De fato",
comentou, "estávamos preocupados com a deriva para o comunismo do Chile, país estratégico-chave, pois é uma adaga apontada
para o coração da Antártida"...
Infelizmente para o autor, as investigações do Congresso confirmaram o pior, e até hoje o professor se defende dos esforços da Justiça para ouvir o que sabe acerca
do assassinato do general Prats,
em Buenos Aires, e de outros crimes sórdidos.
O comentário do chefe da política comercial dos EUA, Robert
Zoellick, é do mesmo teor. A escolha para o Brasil se resumiria entre a Alca e a Antártida, presumivelmente o comércio com os pinguins, o que talvez se inspire na
crença de que, para tropicais friorentos como nós, não haveria alternativa mais arrepiante. Dado
o interesse público do tema, é impossível evitar que ele se complique ainda mais, em razão das
simplificações das campanhas
eleitorais ou da guerra de propaganda comercial. Passado o calor
das eleições, esperemos que os
ânimos "esfriem", como convém
à co-presidência da Alca, que brasileiros e americanos partilharão
a partir de novembro. Quem sabe
se constatará então com surpresa
que as maiores dificuldades não
estarão necessariamente do nosso
lado. Foi isso o que Sergio Amaral
sugeriu num discurso recente em
Nova York, no qual convidou
Washington a pôr de lado a seletividade restritiva da autorização
negociadora aprovada pelo Congresso.
A chamada Autorização de
Promoção de Comércio (TPA)
lembra muito os mandamentos
negativos do tipo "não cobiçar,
não furtar, não mentir" etc. Com
efeito, em relação a cerca de 350
produtos "sensíveis", o USTr, o escritório comercial dos EUA, terá
de consultar novamente as duas
comissões de agricultura e as
duas de comércio da Câmara e do
Senado sobre "se seria apropriado
fazer qualquer concessão adicional, levando em conta o impacto
de tal redução na indústria dos
EUA do referido produto". Ademais, terá também de "solicitar
que a Comissão de Comércio Internacional prepare uma avaliação" desse impacto na indústria
afetada e na economia dos EUA.
Se persistir depois disso, deve notificar as comissões parlamentares sobre as razões para buscar tal
liberalização.
Na origem desse mecanismo
restritivo, vai-se encontrar a Comissão Cítrica da Flórida, que,
desde 1997, insistia em que "nenhuma redução tarifária adicional, além da já negociada na Rodada Uruguai, deveria ser feita
ao Brasil" no produto que, muito
apropriadamente para o nosso
debate, a nomenclatura aduaneira americana chama de suco de
laranja concentrado "congelado"
("frozen"). Certamente por mera
coincidência, a recente declaração inspiradora deste artigo foi
proferida em Miami. A redução a
que alude a comissão foi a mínima admissível: menos de 2,5% no
primeiro ano. Essa tarifa é no momento de US$ 0,785 por litro, o
equivalente a 30% a 60% "ad valorem", conforme a oscilação do
preço. Após essa redução simbólica, a tarifa é apenas 15% menor
do que em 1947, há mais de meio
século.
O professor Craig VanGrasstek,
de Harvard, mostrou no estudo
"Comparando maçãs e laranjas:
o comércio em suco de frutas"
que, enquanto a importação de
suco de maçã goza de tarifa zero,
a de suco de laranja resistiu a todas as ofensivas graças a uma poderosa bancada na Câmara, que
passou de cinco deputados nos
anos 30 para 25 após o censo de
2000. Nesse estudo, a seção sobre
o "lobby" da Flórida se chama, de
modo adequado à nossa discussão, "Congelando a tarifa de suco
de laranja".
Não se trata de exemplo único,
embora haja poucos do mesmo
nível de êxito. Não devem assim
preocupar-se os amigos americanos. Não, não queremos vender
geladeiras aos pinguins. Preferimos vender suco de laranja congelado aos americanos, se eles se
dignarem a nos dar uma chance.
E não só o suco. Por que não também o açúcar, que tem de pagar
tarifa extra-quota de 236%, ou o
tabaco, onerado extra-quota com
a módica taxa de 350%, ou mesmo o etanol (2,5% mais US$ 0,52
por galão), o aço, para o qual se
precisaria de uma página inteira
só para resumir as salvaguardas,
direitos compensatórios e medidas antidumping de que é vítima?
Diante de tal arsenal, quem sabe
se seria mais fácil vencer a resistência dos pinguins da Antártida?
A suprema autoridade comercial americana teria afirmado:
"Queremos fazer a primeira oferta à América Latina porque eles
são nossos parceiros mais próximos. Mas, se eles decidirem ir em
outra direção, se quiserem dirigir-se ao sul, à Antártida, nós
olharemos para o leste e para o
oeste". A frase lembrou-me algo
dito pelo Barão do Rio Branco no
início de 1903. O presidente Pando, da Bolívia, tinha decidido reprimir pessoalmente a rebelião do
Acre. O Brasil resolveu, em resposta, ocupar o território, e o Barão explicou: "O sr. presidente
Pando entendeu que é possível
negociar marchando com tropas
para o norte. Nós negociaremos
também fazendo adiantar forças
para o sul". Logo, porém, atenuou
a declaração com sentença que,
melhor que as ironias ou as imagens militares, é apropriada para
fechar este comentário: "O governo brasileiro continua pronto para negociar um acordo honroso e
satisfatório para as duas partes e
deseja muito sinceramente chegar a esse resultado".
Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
E-mail -
rubensricupero@hotmail.com
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