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OPINIÃO ECONÔMICA
A maré começa a baixar
RUBENS RICUPERO
Não são só os muros do passado que estão voltando,
agora contra imigrantes, terroristas-suicidas ou importações. A
mesma sinistra ameaça de uma
guerra permanente volta a angustiar-nos, como nos dias da
construção do Muro de Berlim ou
da crise dos mísseis em Cuba. Haverá guerras e rumores de guerra,
prevenia-nos o Evangelho. Os rumores continuam agora insistentes sobre o Iraque, enquanto diariamente assistimos às cenas de
horror do Oriente Médio e do Afeganistão.
E, no entanto, há outros aspectos em que o passado ameaça repetir-se. Há de novo colapsos da
Bolsa, escândalos financeiros, perigos das consequências para a
economia mundial de um súbito
afundamento do dólar. O que pode, por sua vez, reafirmar a primazia dos problemas domésticos
nos EUA e reduzir a prioridade
exclusiva à luta militar contra os
novos inimigos estratégicos, terroristas ou países fora-da-lei.
Tenho às vezes a estranha impressão de reviver a experiência
que senti ao chegar a Washington
como embaixador do Brasil, em
agosto de 1991, pouco após a vitória na Guerra do Golfo. A sensação era então que os americanos
haviam descoberto fórmula infalível para lidar com as crises externas e manter, ao mesmo tempo, elevado grau de apoio interno
ao governo. Processava-se a mágica por meio da constituição de
coalizões ("coalition-building"),
em que os EUA entravam com o
substancial dos meios militares,
cabendo a outros o financiamento ou as bases logísticas.
A primeira e mais brilhante
aplicação da receita tinha sido a
fulminante operação para expulsar do Kuait as forças iraquianas
invasoras, esmagando-as depois
na rápida ofensiva que se seguiu.
Foi também a revelação da extraordinária capacidade da tecnologia sofisticada para permitir
ataques devastadores a partir de
uma distância segura. Com perdas humanas minimizadas para
os atacantes, o custo econômico
coberto pelo Japão, a Alemanha e
a Arábia Saudita, assegurada a
sanção do Conselho de Segurança
da ONU, inclusive com os votos
da China e da Rússia, parecia a
solução ideal a qualquer crise que
surgisse no horizonte.
De fato, em pouco tempo virou
moda negociar coalizões para o
que desse e viesse: administrar os
desafios oriundos da desintegração da URSS, promover a redemocratização do Haiti, pôr fim à
anarquia na Somália. Era essa,
em essência, a "nova ordem internacional" de que tanto falava o
presidente Bush pai, na época em
que lhe apresentei credenciais. A
estratégia começou a fazer água
na Somália, quando o espetáculo
chocante de soldados americanos
mortos arrastados pela rua provocou reviravolta na opinião pública. A fórmula ainda viria a ser
utilizada por Clinton na Bósnia e
em Kosovo, mas de forma mais
cuidadosa e limitada e com predominante participação européia. O fiasco da Somália pesou
muito, por outro lado, na fatídica
decisão de cruzar os braços diante
do genocídio em Ruanda.
O golpe de misericórdia a essa
política ativista veio de onde menos se esperava, da economia,
que, ao entrar em recessão em
1991-92, alimentou a acusação de
que o presidente descurava os assuntos internos a fim de concentrar-se demasiadamente nas
questões internacionais. A campanha de Clinton acabou vitoriosa na base da célebre frase em que
um dos estrategistas democratas
indicava qual era a prioridade:
"It's the economy, stupid!".
Será que a economia voltará a
ser a prioridade? É bem possível,
se a atual deterioração econômica se intensificar. Salvo, é claro, se
Bin Laden ou algum outro louco
homicida do mesmo gênero contribuir para renovar o sentimento
de pânico ante a ameaça difusa e
indefinida do terrorismo.
É paradoxal que essa hipótese
tenha de ser levada a sério em relação ao segundo Bush, que, segundo consta, teria chegado à
Presidência obcecado em não dar
pretextos a que lhe dirigissem a
mesma crítica de indiferença aos
temas domésticos que se fizera ao
seu progenitor. Não parecia, de
início, haver risco de que tal coisa
ocorresse, pois não era mistério
seu perfuntório interesse pelas
complicações diplomáticas. Os
atentados, contudo, reviraram a
lógica ao avesso e a vigorosa reação do presidente valeu-lhe a conquista da quase unanimidade da
nação. Não é dos menores paradoxos da situação que o setor
apontado como ponto fraco do
candidato eleito por apertada
maioria se revelasse capaz de proporcionar-lhe a legitimidade do
apoio popular. Após a vitória no
Afeganistão, a preparação da
ofensiva contra o Iraque dava a
impressão de poder manter o elevado grau de mobilização e respaldo desejados pelo governo.
Novamente, porém, ressurge o
perigo de direção inesperada. A
economia, em lugar de recuperar-se plenamente no segundo semestre, conforme se previa, dá sinais
contraditórios. Uma sucessão de
desenvolvimentos pouco propícios repõe os temas domésticos no
centro das atenções: a erosão
constante do dólar, a queda da
Bolsa, o recuo do índice de confiança dos consumidores. A isso se
soma a crise provocada pelas práticas de contabilidade "agressivas", fenômeno generalizado
(cerca de mil empresas tiveram de
"retificar" os lucros anunciados
desde 1999) e as acusações sobre o
passado empresarial do presidente, do vice, do secretário do Exército e outros personagens.
Mais uma vez, comprova-se como é difícil a um país atingir e
manter o poder absoluto, o que os
antigos chamavam de "monarquia universal", pois, quando escasseiam os desafiantes externos,
as limitações costumam vir de
dentro. Aonde chegará essa onda
é impossível dizer, mas não se pode negar que acumulam-se os sinais de que a maré começa a baixar.
Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
E-mail -
rubensricupero@hotmail.com
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