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OPINIÃO ECONÔMICA
O nosso 11 de setembro
RUBENS RICUPERO
O título não é meu, mas do
editorial sobre o motim de
Bangu 1, do "Jornal do Brasil" do
dia 12. Nada encontrei de melhor
para exprimir o que senti: estávamos tratando como questão de longo prazo o que equivalia a quase
uma invasão do nosso território
por um inimigo estrangeiro.
A evocação da data fatídica permite comparar a diferença da reação nos dois países. De um lado,
um prefeito que, desde o primeiro
instante, comandou os socorros
com autoridade exemplar, serena,
inspiradora e eficiente. O presidente, eleito com dificuldade, soube
mobilizar a nação inteira; um ano
depois, rara é a fachada, o automóvel que não desfralde a bandeira. O
Congresso rapidamente votou as
leis e os créditos necessários; as entidades incumbidas de combater o
terrorismo foram reagrupadas. Em
poucos meses, o governo dos talebans e os terroristas que protegiam
estavam mortos, em retirada ou escondidos.
Enquanto isso, a discussão entre
nós praticamente se resumiu a saber a quem caberia a responsabilidade de guardar um prisioneiro indesejável, que aparentemente é tão
perigoso fora quanto dentro da prisão! A sensação que se tinha era a
de estar diante de um jogo de empurra entre Estado e União, o governador anterior e a atual, Executivo e Judiciário. Nenhuma proposta coerente para solucionar o problema em sua abrangência e complexidade; nenhuma vinculação
entre essa situação calamitosa e
um setor público depauperado e
obrigado a comprometer-se a crescentes superávits primários no Orçamento por anos sucessivos. Ninguém para perguntar de onde virão, em tal caso, os recursos para
recrutar, treinar e remunerar melhor policiais e agentes penitenciários.
Dir-se-á que a comparação é descabida e que não tivemos 3.000
mortos nem aviões explodindo
contra o Ministério da Defesa. Em
compensação, ninguém jamais se
atreveu nos EUA a obrigar o comércio a fechar as portas sob a
ameaça de armas criminosas. Já se
perdeu a conta do número de chacinas e rebeliões indicadoras de
tendência cada vez mais difícil de
controlar. Não faz muito, escapamos por um triz de tragédia incomensurável no momento da rebelião coordenada de milhares de detentos espalhados pelo território
paulista, episódio sem precedentes,
ao que me consta, em qualquer
país do mundo. Se amanhã houver
levante combinado em todo o país,
não sei se até as Forças Armadas
estariam preparadas. O que esperamos ainda para fazer alguma
coisa?
A patética ineficácia das autoridades ante o desafio põe a nu algo
de mais inquietante: a incapacidade dos setores dirigentes de compreender que a criminalidade no
Brasil não só explodiu em volume e
intensidade mas sofreu mudança
qualitativa. A partir da organização do crime pelos gigantescos lucros do narcotráfico, a situação
mudou de figura, e os métodos e as
leis tradicionais deixaram de produzir efeitos. O domínio de um presídio por facção de celerados que
chegam a arvorar bandeira própria, a intimidação de nove bairros
do Rio por delinquentes que ordenam quando as escolas e lojas podem funcionar são fenômenos que
vão muito além do capítulo dos delitos. Configuram golpe infinitamente mais grave contra o coração
da autoridade, atentado ao aspecto mais irredutível da razão de ser
do Estado: o monopólio do uso legal da coação e da força. É o que
ocorria em certas regiões colombianas cedidas à guerrilha (não diretamente ao narcotráfico). Mas na
Colômbia essas são zonas remotas,
de acesso complicado, não a praça
Saenz Peña, em plena Tijuca, onde,
menino de dez anos, eu frequentava as matinês de domingo.
Repete-se aqui o padrão do que
ocorre (ou não ocorre) na educação fundamental, na falta de reforma política e em tantas outras
áreas: as fórmulas atuais não funcionam há décadas, mas, como as
constituições dispuseram a matéria
de uma determinada maneira, não
somos capazes de imaginar outra,
mesmo diante da evidência do fracasso da experiência corrente. A repressão ao crime, especialmente ao
narcotráfico, e a gestão penitenciária pertencem a essa categoria. Não
se percebe que elas se tornaram de
longe a mais mortal ameaça à segurança dos cidadãos e do Estado,
muito mais iminentes e reais do
que qualquer perigo externo. Infelizmente, um dos setores brasileiros
que mais dificuldades têm de lidar
com a modernidade e a realidade
(até no estilo) é o jurídico, aí compreendidos vários gêneros, desde os
penalistas ultraliberais receitando
as "prisões abertas", como se fôssemos a Dinamarca, e não um país
semibárbaro (o "semi" soa cada
vez mais otimista), até os legisladores e advogados de defesa "responsáveis" pela Lei de Execução Penal,
que permite liberar o detento após
um sexto da pena somente! Isso em
1984, quando os americanos liquidavam boa parte do crime organizado na base do inovador sistema
de presunções legais do "Racketeering Act" e a tendência em toda a
parte era em favor de penas mais
severas e de modernos processos de
investigação e prova capazes de enfrentar a complexidade e os recursos dos novos tipos de crimes.
A desatualização cultural da
maioria dos políticos brasileiros
sempre dificultou a modernização
da agenda dos problemas do Estado e os impede até de reconhecer as
mudanças na realidade contemporânea do próprio país. Alguns desses problemas acabaram incluídos
e resolvidos por políticos impetuosos e fora dos moldes habituais, como foi o caso de Collor no início da
liberalização comercial e na reserva dos Ianomâmis. Em segurança,
porém, as poucas propostas, sobretudo de populistas, são ou demagógicas ou na linha da barbárie.
Tem razão o jornal carioca: o
nosso terrorismo, a ameaça vital à
nossa segurança, não provém da Al
Qaeda, mas do crime, do tráfico, da
bomba-relógio das prisões. Enfrentá-la dentro da lei e dos direitos humanos exige mobilização e elevação do problema ao nível federal
mais alto, modernização das leis e
da mentalidade jurídica, participação de todos, inclusive das Forças
Armadas, no que couber, espírito
pragmático, voltado à solução de
problemas concretos e recursos suficientes. Se não fizermos isso logo,
descobriremos, cedo ou tarde, que o
título do editorial foi otimista: o
nosso verdadeiro 11 de setembro
ainda não aconteceu e, quando
vier, receio que será muito pior que
o lastimável episódio recente.
Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
E-mail -
rubensricupero@hotmail.com
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