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OPINIÃO ECONÔMICA
Um recurso sempre desgraçado
RUBENS RICUPERO
De modo inesperado para
um estadista típico do século
19, vivendo em meio à loucura belicista que precedeu a Primeira
Guerra Mundial, o Barão do Rio
Branco declarou, em certa ocasião: "O recurso à guerra é sempre
desgraçado". A afirmação é peremptória e não admite exceções.
Não nega o legítimo direito de defesa ou proteção aos nacionais.
Escrevo no dia 21, cem anos exatamente após a assinatura em La
Paz do "modus vivendi" que reconheceu a ocupação provisória do
Acre por tropas brasileiras, a fim
de separar os bolivianos dos rebeldes de Plácido de Castro. Rio
Branco, que estava na origem da
decisão, admitia circunstâncias
excepcionais como essa.
Por sorte, não se chegou a choques armados com os vizinhos,
mas poderia ter-se chegado. Mesmo em tais extremidades, para o
chanceler, a guerra teria sido
uma desgraça, como seria sempre, isto é, em qualquer caso. Foi
por acreditar de verdade no que
dizia -não como os que trazem
a guerra no coração e "slogans"
publicitários de paz nos lábios-
que o Barão conseguiu evitar o
conflito e assinar o Tratado de Petrópolis, de que celebraremos, em
17 de novembro, o centenário.
É essa a verdadeira glória de
um país como o nosso, o único dos
cinco "países-monstros" -os outros são os EUA, a China, a Rússia, a Índia- que não é potência
nuclear nem potência de qualquer tipo. O único, também, entre
os que possuem muitos ou poucos
vizinhos -e, em nosso caso, são
dez e já foram 11- que se orgulha
não de uma parafernália tecnológica capaz de matar inimigos
com precisão cirúrgica, não de superbombas ou de armas atômicas
sujas ou limpas, não de Arcos do
Triunfo construídos com dor e
sangue, mas simplesmente de título que oxalá não perca nunca: o
de viver em paz com os seus vizinhos há mais de 133 anos ininterruptos, desde que se encerrou, em
1º de março de 1870, sua última e
infausta guerra nacional, a da
Tríplice Aliança.
Não vou falar do que agora se
passa no Iraque, pois nada sei a
respeito. Há dias, desde que começou "essa maldita guerra"
-para lembrar a frase do Barão
de Cotegipe, a propósito da Guerra do Paraguai-, confesso não
ter ânimo de ler jornais, escutar o
rádio e muito menos de olhar a
TV. Tenho repugnância invencível diante da guerra ao vivo, em
direto, pornografia que me parece
pior que a do sexo mecânico e degradado. Às vezes, quando passo
diante de um aparelho ligado,
percebo de relance a visão fantasmagórica de uma Bagdá irreal,
iluminada pela bruxoleante luz
esverdeada dos cemitérios, entrecortada pelas explosões dos ataques.
Fico imaginando como se sentem aterrorizados aqueles pobre
seres humanos, crianças, mulheres, velhos, gente humilde, sofredora, encolhidos nos frágeis porões das pobres casas, à espera de
que os bombardeios cessem antes
que eles se transformem em estatísticas de "danos colaterais inevitáveis", certamente lamentados
pelos vitoriosos. Tento refugiar-me em trabalhos inadiáveis ou
inventados, busco algum sentido
na leitura dos Salmos. Pouco a
pouco, sinto invadir-me o desalento, a angústia, a desesperança
de uma tristeza infinita, que corrói o desejo de viver. O que me
consola é a reação de indignação
e revolta quase unânimes na Europa, as manifestações espontâneas de jovens, adolescentes, colegiais, a afirmação da vida contra
a morte.
Tenho lembrado muito, nestes
últimos tempos, o episódio ocorrido na Universidade de Salamanca em 12 de outubro de 1936, celebração da Festa da Raça, no início da Guerra Civil Espanhola. O
general Millán Astray, sinistro
personagem, fundador da Legião,
sem um olho e um braço que havia perdido no Marrocos, fez um
discurso insultuoso para catalães
e bascos, invocando em certa passagem a morte, "noiva da Legião". O reitor, d. Miguel de Unamuno, representando naquele ato
a Franco, ao qual havia aderido,
na presença da primeira-dama,
não se conteve e declarou, alto e
bom som: "Acabo de ouvir o grito
necrófilo e sem sentido de Viva a
Morte! Isso me soa o mesmo que
Morra a Vida! E eu, que passei toda a vida criando paradoxos que
causaram o desagrado dos que
não os compreenderam, devo dizer-lhes, como autoridade na matéria, que esse ridículo paradoxo
me parece repelente. (...) O general Millán Astray é um inválido
de guerra (...) Também o foi Cervantes (...). Desgraçadamente, há
hoje em dia demasiados inválidos
na Espanha e logo haverá mais, se
Deus não nos ajuda (...). Um inválido que careça da grandeza espiritual de Cervantes (...) costuma
sentir-se aliviado vendo como aumenta o número de inválidos ao
seu redor (...). O general Millán
Astray (...) desejaria ver a Espanha mutilada, como inconscientemente deu a entender". Nesse
ponto, o general bradou: "Morra
a inteligência".
Já que estou em veia de evocação histórica, não custa continuar
a transcrever esse episódio exemplar nas lições que encerra para
os tempos que correm. Primeiro,
as palavras com que o velho filósofo começou a reagir às provocações do general: "Calar significa
às vezes mentir porque o silêncio
poderia interpretar-se como
aquiescência. Eu não poderia sobreviver a um divórcio entre minha consciência e minha palavra,
que sempre formaram um par
perfeito". E as célebres palavras finais, verdadeiras no tempo de
Unamuno e no nosso. "Vencereis,
mas não convencereis. Vencereis
porque vos sobra força bruta. Mas
não convencereis, porque convencer significa persuadir. E, para
persuadir, necessitais de algo que
vos falta: razão e direito de luta."
Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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