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LUÍS NASSIF
Meu amigo, o livro
Minha filha Beatriz vai
fazer cinco anos. Aos sábados, exige que a leve à livraria
do shopping para comprar livros. Como ainda não sabe ler,
escolhe livrinhos pela figura, leva para casa, passa horas olhando as imagens, com olhar perdido, sonhador. Na hora de dormir, guarda o livro debaixo do
travesseiro.
Como uma mocinha contemporânea, assiste aos desenhos da
televisão, assim como sua irmã
Dora, de três anos, e sua sobrinha Clara, de quatro anos. Mas
o livro já entrou no seu mundinho.
E, vendo-a com seus livrinhos,
que guarda de forma organizada na sua estante -nem sei para quem puxou-, lembrei-me
de minha relação com os livros.
Tinha cinco anos, comecei a soletrar algumas sílabas, mas incapaz ainda de ler. O enigma do livro me angustiava. Um dia, na
casa de minha avó Martha, vi
um livro do Pinóquio em cima
do rádio ligado. Supus que livros
eram assim: colocavam-se em cima do rádio, para que os locutores lessem para nós. Perguntei
para a tia Marissa se era assim
mesmo, ela concordou, distraída, e sua desatenção me deu
enorme trabalho.
Lembro-me com crupe na cama, minha prima Rosa Maria
lendo o livro do Pinóquio, eu pedindo para abrir em determinada página, marcando, e ela me
lendo o assunto. Eu memorizava
e, depois, colocava o livro em cima do rádio, na página aberta, e
nada de o locutor entrar no tema.
Aprendi a ler cedo, aos seis
anos, descobri livrinhos de historinhas épicas, me encantei com
Tancredo e os 12 de França, com
a Távola Redonda. Depois, ainda com seis anos, descobri o Tesouro da Juventude do meu avô
Issa, edição de 1925, supervisão
de Clóvis Bevilacqua. Entrei no
primeiro ano primário com seis
anos e meio, escrevendo cavalo
com dois eles. Para atualizar a
ortografia, ganhei uma edição
nova da coleção, que jamais me
comoveu.
Aos oito anos descobri a coleção infantil de Monteiro Lobato.
Depois, fui desbravando a bela
biblioteca de meu pai, me encantando com José de Alencar, com
os clássicos resumidos da coleção
Saraiva, avançando em Machado de Assis e lendo escondido "O
Crime do Padre Amaro", de Eça
de Queiroz. Aos 12 anos ousei
Jorge Amado, e como Jorge
Amado encantou toda minha
geração adolescente, menos pela
luxúria dos temas, mais pela luxúria do texto!
Já na adolescência, nas assembléias da Academia Literária
Afonso Celso, do Colégio Marista, ousávamos discussões sobre
as obras de Monteiro Lobato sobre petróleo, sobre os poemas de
Drummond e João Cabral.
O amor ao país se manifestava
nas músicas, em toda uma geração que celebrava permanentemente seu país entoando Noel e
Chico, Lamartine e Edu, Tom e
Milton. Mas o Brasil que passou
a vir por meio dos livros era diferente, permitindo-nos entrar nos
túneis do tempo e da compreensão da história. Conheci o Brasil,
primeiro, pelos olhos de Monteiro Lobato. Depois, de Gondim
da Fonseca. Fiquei estatelado
com o Brasil de Gilberto Freyre,
em parte pelo conteúdo, muito
pela linguagem luxuriante, que
entrava por todos os poros da
sensibilidade. Depois conheci o
Brasil de Sérgio Buarque e Caio
Prado e o Brasil definitivo de
Manuel Bonfim.
Já adulto, no início de carreira,
analisava a escrita como a música. O texto curto de Ítalo Calvino
e Dalton Trevisan lembrava a
bossa nova. O de Machado lembrava Tom Jobim. O de Jorge
Amado obviamente lembrava
Caymmi. Depois, descobri o texto de Pedro Nava, e parecia uma
sinfonia amazônica de Villa-Lobos. José Cândido de Carvalho e
seu regionalismo saboroso lembravam as melhores modas de
viola de Laureano. A primeira
vez que li Domingos Pelegrini
lembrei os choros pós-anos 50,
aquelas estruturas que não obedeciam à lógica, ao tamanho,
que fluíam sem ponto, pulando
de vírgula a vírgula como a melhor harmonia de Laércio de
Freitas.
Aí me dou conta de que, passam os tempos e a tecnologia, entra-se na internet e nos PDFs da
vida, na era do cabo e da TV digital, do palm e do notebook,
mas o livro jamais desaparecerá.
E, quando vejo a Bibi, a Dodó e a
Cacá folheando seus livrinhos
coloridos, seus pedaços de papel
sem chips nem eletrônica, me comovo e me tranquilizo. Longa
vida ao meu amigo livro.
E-mail - LNassif@uol.com.br
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