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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Patinando em gelo fino
LUIZ GONZAGA BELLUZZO
O jornal "Valor", em sua
edição de sexta-feira, dia 21
deste mês, informa que nos Estados Unidos a inadimplência entre
janeiro e maio bateu nos US$ 46
bilhões. Há uma evidente concentração de calotes nas empresas de
telecomunicações e produtoras de
cabos de fibra óptica. Justamente
as "queridinhas" dos apologistas
da nova economia. Isso não é surpreendente: nas avaliações dos
anos 90, esses setores prometiam
lucros elevados e expansão prolongada.
"Aí vem confusão!" A advertência foi lançada há tempos pela revista "The Economist". Não é de
hoje que a publicação inglesa vem
chamando a atenção de seus leitores para a fragilidade dos bancos europeus e americanos, os
mais envolvidos com créditos aos
setores de crescimento rápido.
Na década de 80, a ampliação
dos mercados de capitais, ao estimular a colocação direta de papéis de dívida, capturou as empresas mais fortes e mais bem reputadas, deixando para os bancos a clientela de maior risco, as
empresas mais frágeis e os consumidores. Esses mercados teriam a
virtude de combinar as vantagens
da melhor circulação das informações, da redução dos custos de
transação e da distribuição mais
racional do risco.
Nos anos 90, para enfrentar a
parada dura, os bancos foram à
luta: reivindicaram e conseguiram se transformar num supermercado financeiro, terminando
na separação das funções entre os
bancos comerciais e de investimento, imposta pelo Glass-Steagall Act na crise bancária dos
anos 30. Buscaram escapar das
regras prudenciais, promovendo
a securitização dos créditos. Ainda tangidos pelas forças da concorrência, deram início a um intenso e ainda não acabado processo de concentração bancária e
de expansão internacional.
Está cada vez mais claro que todos esses fenômenos, típicos do
capitalismo da "exuberância irracional" de todos os tempos, estão associados à recente multiplicação das crises cambiais, financeiras e bancárias. Apesar de todos os avanços nas técnicas de
gestão do risco e do maior rigor
imposto pelas regras da Basiléia,
o ímpeto da concorrência levou o
sistema bancário internacional à
incessante violação de todas as
normas e à velha e fatal combinação entre euforia, má avaliação
dos créditos, concentração setorial de ativos e superalavancagem.
Os bancos comerciais são, na
verdade, instituições singulares:
responsáveis pela criação de moeda e pelo sistema de pagamentos
na economia capitalista, dispõem
da faculdade de avançar o poder
de compra, até então inexistente,
aos proprietários de riqueza, a
partir da avaliação dos riscos de
crédito. Por isso muitos só consideram verdadeiras crises financeiras aquelas que afetam a liquidez e a solvência bancária.
Diga-se que o establishment financeiro americano jamais se
conformou com a regulamentação imposta aos bancos e demais
instituições não-bancárias pelo
Glass-Steagall Act no início dos
anos 30. Foi também grande a resistência dos negócios do dinheiro
às propostas de Keynes e de Dexter White para a adoção de controles sobre os movimentos de capitais nas reformas do sistema
monetário internacional do pós-guerra. Ainda assim, nos sistemas
monetários e financeiros constituídos depois da Segunda Guerra,
o clima favorável à manutenção
do pleno emprego e às políticas de
desenvolvimento permitiu que o
pêndulo se inclinasse, durante
um bom tempo, para a presença
importante dos bancos públicos,
para o direcionamento do crédito
e para a regulamentação e especialização das instituições financeiras, bancárias e não-bancárias.
Na verdade, as políticas dos Estados Unidos de estímulo à abertura financeira e à privatização
bancária nos anos 80 e 90 estão
associadas à recuperação do predomínio da alta finança na hierarquia de interesses que se digladiam no interior do Estado plutocrático americano.
A crise da dívida externa do início dos anos 80 e a reafirmação do
papel do dólar como moeda universal criaram as condições para
que surgissem novas formas de
intermediação financeira, uma
segunda etapa da globalização.
Foi nesse ambiente marcado pela
sustentação da supremacia do
dólar e de reestruturação do sistema monetário internacional que
ocorreu "a grande fuga para a
frente", consubstanciada no aparecimento dos novos processos de
desregulamentação e securitização.
Estimulados pelo longo crescimento e constrangidos pela concorrência, os grandes bancos internacionalizados vêm tomando
decisões que parecem distantes do
modelo idealizado. Certamente
não são as mais eficientes do ponto de vista social. Mas a fantasia
-não a realidade- levou
adiante os programas de privatização bancária na periferia. Em
vez de fortalecer os seus sistemas
públicos e nacionais de crédito, os
governos entregam-se à utopia da
maior eficiência dos estrangeiros
ou à quimera de que contariam
com liquidez garantida em moeda forte no caso de uma crise no
balanço de pagamentos. Os argentinos estão aprendendo o
quanto custa acreditar em tolices
desse tipo.
Luiz Gonzaga Belluzzo, 59, é professor
titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos
do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia
do Estado de São Paulo (governo Quércia).
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