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OPINIÃO ECONÔMICA
Três alqueires e uma vaca
RUBENS RICUPERO
Em alagoas , rumo a São Luís
do Quitunde e para o norte, o
canavial desponta no fim da pista
do aeroporto e avança por mais de
cem quilômetros de estrada, devorando o asfalto do acostamento.
Só cede, aqui e ali, empurrado pelos ajuntamentos de ranchos de
folha de palmeira, que tentam se
defender sob a bandeira de vermelho desbotado do MST. São lavradores desalojados pelo arrendamento da terra aos usineiros, disseram-me.
Como seria possível viabilizar a
reforma agrária a partir de precariedade quase terminal como essa?
Ninguém parece interessar-se pelo
problema. A imprensa anda perdida no exagero obsessivo da crônica policial das invasões e quase
não tem olhos para mais nada.
Em país no qual o narcotráfico fecha impunemente o comércio em
bairros do Rio e, às 11h, bandidos
de motocicleta assaltam carros à
saída do aeroporto de Congonhas,
querem fazer-nos crer que a lei e a
ordem pública correm perigo mortal devido aos pobres seres que habitam esses mocambos. Vá lá que
as ocupações tenham importância
política imediata. Contudo o conflito pela terra se faz em nome de
alguma coisa maior. Se a reforma
se revelar um logro ou medida às
meias, fadada ao fracasso, como a
Abolição, fica tudo mais trágico.
Existe futuro para a agricultura
familiar e artesanal em economia
encruada, sem crescimento nem
demanda interna, cujo único setor
dinâmico, impulsionado pelo
mercado externo, é o agronegócio
de exportação, movido a doses
maciças de capital, tecnologia e escala de produção? Num mundo
em que as regras da OMC (Organização Mundial do Comércio)
vão gradualmente se impondo ao
comércio agrícola, terá essa pequena agricultura condições de
sobreviver se exposta à concorrência estrangeira e, se passar a ser
ilegal, recorrer a subsídios e barreiras de proteção?
As duas agriculturas mais avançadas, a dos EUA e a da França,
não conseguem deter a acelerada
extinção dos pequenos produtores,
apesar dos subsídios e do protecionismo. Desde 1960, dobrou, nesses
países, a área média das fazendas,
à medida que se inviabilizava a
pequena propriedade. Um terço
dos camponeses franceses desapareceu em 12 anos e a população
rural das nações ricas oscila entre
1% e 3,5%.
É certo que a concentração dos
subsídios em mãos dos grandes
tem muito a ver com isso. Não se
pode negar, todavia, que a concentração dos pagamentos obedece à lógica da agricultura capitalista. A escala torna mais eficiente
a produção de quase todos os
grãos -trigo, milho, soja, cevada,
arroz-, bem como da carne bovina e das principais culturas de
mercado -cana, algodão, frutas e
legumes para a industrialização.
O que sobra? A horticultura, os
cultivos "gourmets", certos tipos
de atividade baseados na dependência da agroindústria -a carne de suínos e de frango em relação aos frigoríficos, os fornecedores de laranjas para com os esmagadores.
Pode ser que no Brasil a coexistência de economias de eras históricas distintas permita algum espaço para culturas de subsistência,
de produtos fora do circuito comercial. Por quanto tempo, porém, e em que nível de renda?
Quanto às negociações comerciais na OMC, na Alca ou no Mercosul, o perigo não é imaginário.
Um dos problemas dramáticos do
Nafta (Acordo de Livre Comércio
da América do Norte) é justamente o impacto sobre os pequenos
produtores mexicanos da abertura do mercado para a carne suína
e de frango dos EUA e, até 2008, a
liberalização do feijão e, sobretudo, do milho, base da alimentação
e último refúgio dos camponeses.
O princípio geral das negociações, violado na prática mas ganhando terreno aos poucos, estipula que não deve haver barreiras
contra quem dispõe de qualidade
e preço, seja nacional ou estrangeiro. É por isso que as propostas
brasileiras são afinadas com os interesses da agricultura de exportação, como não poderia deixar de
ser. Se queremos que a soja, o açúcar ou o suco de laranja do Brasil
tenham acesso livre ao mercado
dos outros, não podemos barrar a
entrada no nosso do vinho, trigo,
arroz e frutas do Mercosul e do
Chile. Em consequência, a liberalização comercial, por meritória
que seja, não deixa de exacerbar a
concorrência de fora, tornando
mais difícil ainda a sobrevivência
dos pequenos, já ameaçada pelos
grandes do próprio país.
É essa a implicação mais grave
das negociações, não tanto a limitação dos subsídios. Como a reforma agrária tem caráter social, não
econômico, não será difícil inserir
na "caixa verde", isto é, nos subsídios legais, o apoio financeiro à
sua execução. A rigor, melhor teria sido imitar a Austrália, que incluiu explicitamente nessa categoria os gastos com a aposentadoria
de agricultores. O Brasil já tem um
programa de ajuda à agricultura
familiar e terá de manter por muito tempo um similar, a fim de amparar os assentamentos com algo
mais que a cesta básica. O mais
provável é que a limitação venha
da capacidade do Tesouro de levantar recursos, se tiver de seguir
produzindo saldos primários para
contentar o FMI e pagar aos rentistas da dívida.
Embora aumentem o já considerável grau de complicação da reforma, me sinto no dever de suscitar questões como essas, praticamente ausentes do debate. Não
para insinuar que a pequena propriedade é inviável na agricultura.
Não vejo razão para que ela não
possa constituir o núcleo de um
desenvolvimento rural humano,
assim como a pequena e a média
empresa são, na indústria e no comércio, as principais geradoras de
emprego. Da mesma forma que
nesses setores, contudo, a agricultura familiar necessita de políticas
adequadas de crédito, fomento
tecnológico, de alívio de impostos
e muitas outras. É possível que a
sua viabilização dependa de uma
organização de tipo associativo ou
cooperativo.
Conforme começa a ocorrer na
Europa, será preciso que o Estado
remunere o papel da pequena
agricultura na proteção do ambiente, dos recursos aquáticos, na
produção de alimentos orgânicos.
Para isso, a Embrapa e as universidades rurais devem ajudar o governo e o MST a desenvolver fórmulas que tornem possível dar
uma vida digna e decente ao nosso
lavrador, o que certamente exigirá
muito mais que "três alqueires e
uma vaca".
Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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