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OPINIÃO ECONÔMICA
Não
RUBENS RICUPERO
Dalva Gasparian conta
que o maior sucesso de sua
carreira de livreira e da editora
Paz e Terra de Fernando foi um
pequeno livro de Celso Furtado
cujo título se resumia a essa palavrinha vigorosa: "não". Filas intermináveis dobravam a esquina
para comprar a obra que, em pleno regime militar, ousava dizer,
alto e claro, "não" à recessão, ao
desemprego, à perda da esperança.
Nem sempre o sim é positivo e o
não, negativo. Ocasiões há na vida dos indivíduos e das nações
em que é preciso dizer não: à
opressão, à tortura, à mentira, à
espoliação. Ninguém conhece isso
melhor que Celso Furtado, que
passou boa parte de seus últimos
30 anos exercitando a estóica virtude da "negatividade positiva".
Quem sabe se não haveria alguma predestinação em nascer na
Paraíba, Estado onde a bandeira,
evocando o sacrifício de João Pessoa, concentra sua capacidade de
recusa numa palavra desafiadora: "Nego"!
Desde que cheguei ao Brasil,
duas semanas atrás, pressinto estarmos num desses momentos em
que se tem de dizer não antes que
seja tarde demais. A situação
lembra a que motivou o livro de
Celso. Não se propõe abertamente
a recessão, mas as políticas propugnadas conduzem inexoravelmente a esse resultado. Em economia que, se já não caiu em recessão, não está muito longe disso,
aplica-se a combinação perversa
de juros altos com superávits orçamentários primários cada vez
mais elevados. Em outras palavras, as políticas monetária e fiscal se reforçam para frear a economia como se esta estivesse em
disparada ladeira abaixo, quando, na realidade, ela está quase
em ponto morto.
A rigor pode-se até compreender a inevitabilidade de tais medidas como expediente temporário para obter a ajuda do FMI
neste episódio agudo de turbulência pré-eleitoral, uma espécie de
mal menor, de máscara de oxigênio num mergulho de descompressão. Conforme ocorria na
eleição de 1998 em relação à taxa
de câmbio, os candidatos fazem o
jogo perigoso de simular que devem manter ou aumentar o superávit orçamentário indefinidamente, rendendo-se ao dogma
das atuais autoridades financeiras. Nós, porém, que não somos
nem uma coisa nem outra, temos
o dever de fazer algumas perguntas.
Por exemplo, levando em conta
que a taxa de juros não deve ser
superior à de crescimento da economia, será possível manter juros
reais de 10% a 12% ao ano, quando a expansão econômica não
chega a 2%? Como evitar, nessas
condições, que o endividamento
aumente velozmente e a relação
dívida-PIB se deteriore sem cessar? Se, ao mesmo tempo, obrigar-se o governo a cortar cada vez
mais seus gastos, até mesmo para
pagar a forragem dos animais das
pesquisas da Embrapa, de onde
virá o impulso para que volte a
crescer a economia já esmagada
pelos juros e pela carga tributária
de 33% do PIB? Se é do exterior,
qual seria a fonte? A dos recursos
financeiros está secando, pois os
investidores, empenhados em reduzir sua exposição em países
emergentes, recusam no momento até a renovar as linhas comerciais de curto prazo, em que o risco é mínimo. Os investimentos diretos na produção só são atraídos
normalmente em períodos de
crescimento. Quanto às exportações, além dos preços em baixa e
das barreiras protecionistas em
alta, têm de enfrentar mercados
em via de encolhimento nos EUA
e na Europa.
Faz sentido, numa economia
mundial anêmica, com riscos
não-desprezíveis de agravamento, comprometer-se a gerar, por
vários anos sucessivos, superávits
primários elevados em orçamento dependente de economia doméstica debilitada? Não foi essa a
"solução" de De La Rúa e de Cavallo, que deu no que se sabe, com
a única diferença de que na Argentina a recessão estava mais
avançada?
O Brasil só tem saída se crescer.
E crescer de acordo com sua taxa
potencial de crescimento de longo
prazo. Em lugar de comprometer-se imprudentemente com superávits orçamentários durante anos
a fio, antes de saber se as condições da economia mundial e da
brasileira tornarão tal meta desejável ou possível, os candidatos
fariam melhor em seguir estratégia cautelosa desdobrada em dois
tempos. Em termos imediatos,
aceitar o acordo com o FMI como
ponto de partida, não de chegada.
Ao mesmo tempo, preparar um
programa econômico contemplando diferentes hipóteses de política monetária (os juros) e fiscal
(o orçamento), conforme os diversos cenários possíveis ou plausíveis para a economia no mundo e
no Brasil.
A missão prioritária do futuro
governo terá de ser o esforço de
persuadir o Fundo, bem como os
governos dos principais países ricos, de que, no seu próprio interesse, devem flexibilizar critérios
como o do superávit orçamentário, com vista a viabilizarem o
crescimento mais acelerado do
Brasil. Não só porque essa é a única maneira de erradicar a miséria, declaradamente o objetivo
dos organismos econômicos internacionais e das nações avançadas, mas também por não haver
outro meio de assegurar o pagamento da dívida.
Não será fácil, pois o FMI foi
criado para cuidar de problemas
de curto prazo, o que não nos impede de tentar, com a esperança
de que os fracassos acumulados e
a evolução nas posições doutrinárias rígidas ajudem a demonstrar
o caráter autodestrutivo dos critérios atuais. Quando a economia
dos ricos desacelera, todos concordam que o déficit é uma boa
coisa para estimular a retomada.
É o que dizia, em "The Times",
Anatole Kaletsky, a propósito do
déficit provocado pelo governo
Bush: "Ninguém (a não ser os pré-keynesianos de Neanderthal do
Banco Central Europeu) iria sugerir que se deve endurecer a política fiscal antes que o desemprego
comece a diminuir e a economia
esteja claramente atravessando
uma fase de crescimento auto-sustentado". Por que, senhores, o
que é bom nesse caso para os Estados Unidos não seria bom também para o Brasil?
Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
E-mail -
rubensricupero@hotmail.com
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