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OPINIÃO ECONÔMICA
No atacado e no varejo
RUBENS RICUPERO
Dizia-se da política externa
de Jânio que ela errava no
varejo, mas acertava no atacado.
De meu artigo de domingo passado, afirma-se que está errado, por
basear-se em informações equivocadas (espero que só no varejo),
o que talvez seja o caso, pois li nos
jornais brasileiros cinco versões
desencontradas do que seria a posição oficial. A mais autorizada e
tranquilizadora é a do próprio
presidente, que teria declarado a
Clóvis Rossi categoricamente:
"Não vamos negociar a partir de
uma tarifa que nos desfavoreça.
Se for a tarifa realmente praticada, não precisa negociar" (Folha,
21/5/02). A mais parecida com a
que ouvi no Brasil e provavelmente a mais verossímil é a da reportagem de Lívia Ferrari "Decisão sobre as taxas foi tomada há
meses" ("Gazeta Mercantil", 23/
5/02). Nela, "alta fonte do Itamaraty" teria confirmado que "a decisão do Brasil de negociar (...)
com base na tarifa média aplicada já havia sido tomada havia
meses e (...) apresentada oficialmente nas mesas de negociação
do grupo de trabalho sobre acesso
a mercado (da Alca) ... foi uma
decisão do Gecex, tomada no ano
passado e referendada pela Camex".
Observo, de passagem, que assunto de implicações tão graves
para o futuro da indústria e do
desenvolvimento do país não deveria ser nebuloso a ponto de
prestar-se a versões contraditórias. Também de passagem, aproveito para assinalar que só me referi a tarifas por tratar-se da única área em que, por puro acaso,
tive alguma informação. Não seria tempo de informar a opinião
pública sobre o que porventura tiver sido decidido em itens de
igual sensibilidade como propriedade intelectual, investimentos,
serviços etc.?
Com base no artigo da "Gazeta" e nos esclarecimentos do embaixador Hugueney à Folha e ao
"Estado de S. Paulo", será talvez
possível reconstituir o que de fato
ocorreu. No ano passado, primeiro o Gecex e depois a Camex tomaram a decisão de negociar na
Alca a partir da tarifa média aplicada. Adotada contra o voto da
Coalizão Empresarial Brasileira,
segundo reconheceu a representante da CNI, Sandra Rios ("Gazeta Mercantil", 21/5/02), a posição foi apresentada oficialmente
nas negociações da Alca. O critério escolhido foi o de usar a TEC
(Tarifa Externa Comum) do Mercosul, uma vez que o Brasil não
negocia isoladamente, mas como
parte desse grupo. Como a TEC
está mais perfurada que peneira,
sobretudo devido à desenvoltura
do ex-ministro Cavallo, será necessário acertar, em outubro próximo, qual o nível "efetivamente
aplicado" no Mercosul e em que
data. Corresponderia, assim, ao
futuro governo comunicar à Alca,
em 15 de abril de 2003, a base a
partir da qual o Brasil e seus parceiros do Mercosul negociariam.
Se é razoável essa versão dos fatos, caberia de início fazer notar,
sem menoscabo a nossos vizinhos,
que o Brasil é o país de maior peso
comercial no Mercosul, sendo inconcebível decisão do grupo que
contrariasse nossos legítimos interesses. Deduz-se daí que a postura do Mercosul reflete igualmente os interesses brasileiros.
Mas será mesmo assim? Qual a
razão para afastar-se na Alca do
critério predominante na OMC,
que é o de utilizar a tarifa consolidada (e na OMC a tarifa consolidada pelos membros do Mercosul,
a título individual, é de 35%)?
Alega-se normalmente que, numa área de livre comércio, é mais
adequado adotar a tarifa aplicada porque supostamente todos teriam interesse em chegar o quanto antes à tarifa zero. Isso é certamente verdade em relação ao demandante -no caso, os EUA.
Não é segredo que o Brasil nunca
pediu ou quis a zona de livre comércio, só aderindo à negociação
porque não teve outro remédio.
Quando foi que, de repente, nos
convertemos em campeões dessa
arriscada modalidade tanto com
os EUA como com a Europa (os
quais, aliás, embora muito mais
igualitários e até aliados militares, jamais quiseram estabelecer
uma área desse tipo entre si)? E, se
passamos a ter interesse em
apressar a implantação da Alca,
por que, meses atrás, nos opusemos à antecipação do cronograma?
No fundo, antecipar um ano o
início do cronograma, mantendo
a base da tarifa consolidada, daria mais tempo à indústria para
adaptar-se do que conservar o esquema original, acelerando a
desgravação. A propósito, em matéria de contradições, essa está
longe de ser a única. Se a natureza das áreas de livre comércio exigisse partir da base tarifária mais
baixa possível, também se poderia dizer que essa mesma natureza requer, a rigor, a abolição do
antidumping, conforme fizeram a
Austrália e a Nova Zelândia. Ora,
isso, como se diria no Mercosul,
"ni hablar", pois inaceitável para
o Congresso e o Executivo dos
EUA.
Seria, quem sabe, diferente se
ainda tivéssemos fundadas esperanças de incluir na Alca os temas
de nosso prioritário interesse: aço,
suco de laranja, açúcar, etanol,
tabaco, soja, algodão, carnes, antidumping, direitos compensatórios, salvaguardas etc. É possível
que tenha sido essa a motivação
dos que tomaram no ano passado
a decisão na Camex. Será, contudo, plausível reiterar tal atitude
agora, após as medidas contra o
aço, a nova lei agrícola, as cláusulas da TPA (Trade Promotion
Authority) restritivas de concessões em produtos sensíveis, todos
fatos consumados, não especulações ou ameaças?
É sugestivo, nesse sentido, que a
fonte citada na reportagem de Lívia Ferrari comente, a certa altura, que pretender utilizar a tarifa
consolidada "é o mesmo que não
querer negociar a liberalização",
algo "absurdo (,) impossível de ser
aceito pelos interlocutores". Se assim devemos tratar prática habitual, predominante na OMC, como conviria descrever o desejo de
"negociar a liberalização" dos
que perpetraram essas ações contra o livre comércio? É por essas e
outras que admito equívocos no
varejo, mas duvido sinceramente
estar em erro no atacado.
PS: O artigo estava escrito quando me chegou a notícia da aprovação pelo Senado da TPA, com
todas as emendas restritivas. Não
preciso dizer que isso só reforça a
argumentação.
Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
E-mail -
rubensricupero@hotmail.com
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