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OPINIÃO ECONÔMICA
Alca de geometria variável
RUBENS RICUPERO
Entrar numa negociação
para reduzir a discriminação
de que se é vítima e sair muito
mais discriminado do que antes é
a proeza que ameaça o Brasil se
for vitoriosa a proposta diabólica
(no sentido etimológico de "diabolu", o que divide) dos Estados
Unidos na Alca. Em meados de
fevereiro, prazo para as ofertas de
redução de tarifas em produtos
industriais e agrícolas, os americanos apresentaram não uma lista única de ofertas para todos os
parceiros, como seria lógico e correto, mas quatro listas diferentes.
Cada uma delas vale apenas para
uma das quatro categorias em
que foram divididos os 34 países
do hemisfério Ocidental: Caribe,
América Central, Grupo Andino,
Mercosul.
Em tese, todos os produtos foram incluídos nas quatro listas,
mas os prazos para a desgravação
total, isto é, para eliminar a totalidade das tarifas até chegar a zero, variam bastante segundo a categoria. Os mais favorecidos seriam os caribenhos, para os quais
haveria eliminação total imediata das tarifas de 91% dos artigos
industriais e 85% dos agrícolas.
Os menos aquinhoados seriam os
do Mercosul, que só teriam supressão total para 58% das manufaturas e 50% dos bens agrícolas no início. Se a proposta for
aceita, o Brasil arriscará ficar pior
do que está hoje.
Como assim? É muito simples.
Os caribenhos, centro-americanos e andinos passariam a gozar
no mercado dos EUA de reduções
preferenciais que não seriam estendidas aos similares brasileiros,
prejudicando-lhes, portanto, as
condições de competitividade.
Como os americanos não oferecerão essas concessões sem exigir
contrapartida, é mais do que provável que as exportações dos EUA
serão privilegiadas nos mercados
do Caribe, América Central e Andino por vantagens que serão negadas às brasileiras.
Nosso comércio exterior enfrentaria, desse modo, uma dupla discriminação nos mercados da Alca. Exatamente o contrário do
pretendido pela Coalizão Empresarial Brasileira, coordenada pela
CNI, que define como um dos
principais objetivos no final da
negociação alcançar "a garantia
do nivelamento das preferências
recebidas pelo Brasil em relação
aos nossos principais concorrentes, que já usufruem de preferências comerciais nos países participantes da Alca".
Esse perigo da dupla discriminação, nos EUA e nos latinos, era
o bicho-papão de que se ameaçava o país, caso ele ficasse fora da
Alca. A originalidade agora é que
o bicho-papão nos pega de qualquer jeito, fora ou dentro. Apenas,
nessa segunda hipótese, "algum
dia", dentro de 15, 20 anos, ninguém sabe quando, chegaríamos
lá, quer dizer, nivelaríamos as
condições. Até essa data, porém,
teríamos de pacientemente engolir perdas diárias, mensais, ano a
ano, em exportações, receitas,
empregos.
Absurdo!, dirá o leitor. De fato,
é absurdo. Os acordos de livre comércio (como a Alca) são modalidade admitida pelo artigo 24 do
Gatt (Acordo Geral sobre Tarifas
e Comércio), a fim de permitir a
dois ou mais países chegar mais
depressa à supressão total das tarifas e outras restrições ao essencial do intercâmbio comercial. A
redação do artigo não previu expressamente, mas pressupõe que
tal supressão se efetuará na mesma velocidade por parte de todos
os parceiros. Do contrário, a diferença de ritmo criará discriminações que não existiam antes, não
importando saber se elas serão ou
não temporárias.
Por esse insólito processo, fabrica-se uma espécie de Frankenstein dos acordos de livre comércio, um monstro com um mínimo
de quatro velocidades distintas,
que podem chegar a mais, desde
que se computem os regimes diversos do Nafta para o Canadá e
o México, bem como o do acordo
com o Chile, no momento na geladeira como castigo pela falta de
apoio no Conselho de Segurança.
É uma nova modalidade: o acordo de livre comércio de geometria
variável e quatro a seis marchas,
sem contar a ré (o protecionismo
das barreiras não-tarifárias, como o antidumping, que Washington recusa negociar na Alca). Ou
melhor, consuma-se a bilateralização do que foi originalmente
concebido como um processo plurilateral uniforme e igualitário.
Volta-se ao formato mais nocivo das negociações, o do chamado
sistema do "eixo e raios", no qual
os EUA -o eixo- negociariam,
um a um, com cada país ou grupo
de países -os raios-, dividindo-os, enfraquecendo-os, de modo a
poder extrair o máximo de cada
um.
A fim de combater essa proposta de balcanização, teria sido melhor apoiar a postura do Canadá
e da Costa Rica, que advogam a
apresentação de uma lista única
por país (ou grupos como o Mercosul e o Andino), válida igualmente para todos os demais. De
todas as posições, essa é a que reflete com mais fidelidade a Cláusula da Nação Mais Favorecida,
base do sistema comercial, isto é,
a idéia de que qualquer concessão
feita a um parceiro deve estender-se automaticamente à totalidade
dos participantes. Só ela encarna
a essência do acordo de livre comércio, que é atingir a total abolição das barreiras no mais curto
prazo possível.
Quando critiquei, no ano passado, a aceitação da tarifa cobrada
efetivamente, e não a consolidada, na OMC como base das negociações, os que me contestaram
avançaram apenas um argumento de peso. Alegavam que a essência de um acordo como o da Alca
era promover o mais rapidamente possível o livre comércio. Para
esse fim, faria sentido partir da
tarifa efetiva, que é a mais baixa.
Não se tratava, portanto, de ceder
à posição dos EUA (ou dos parceiros do Mercosul), mas de obedecer à lógica intrínseca desse tipo
de acordo. Ora, pelo mesmo raciocínio, exige a lógica rechaçar a
geometria variável e as velocidades distintas, que nada têm a ver
com a natureza dos acordos de livre comércio. Esperemos para ver,
agora que a lógica mudou de lado, se ela ainda prevalece...
Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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