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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
O mercado e os direitos sociais
LUIZ GONZAGA BELLUZZO
"A caridade é uma visão equivocada como pretensão de tratar a miséria
mediante a particularidade dos bons
sentimentos. A acidentalidade desse
estado de ânimo sente-se mortificada com prescrições obrigatórias e
universais"
(G.W. Hegel, "Filosofia do Direito")
A justiça dos mercados, em
sua essência, não reconhece
nenhum direito senão o que nasce
do contrato, ou seja, da livre disposição da vontade dos indivíduos no intercâmbio entre mercadorias equivalentes. Qualquer
conteúdo, qualquer relação substancial deve ser sumariamente
eliminada. Você quer comer? Pois
venda o seu produto no mercado.
Não conseguiu? Então tente vender a sua capacidade de trabalho.
O homem vale o que o seu esforço vale e o seu esforço vale se a
mercadoria que ele produz for reconhecida pelo "salto perigoso",
pela arriscada transformação no
equivalente geral, o dinheiro. Não
basta ser um bom empregado ou
um ótimo empresário para ter
uma vida decente. A justiça do
mercado ensina e divulga que, se
você fracassou, a culpa é sua. Valer significa apenas ser aceito em
troca de uma determinada quantidade de dinheiro. Caso contrário, nada feito.
A idéia de desemprego como fenômeno social, produzido pela
operação defeituosa dos mecanismos econômicos, é muito recente.
Ainda no final do século 19, o desemprego era confundido com a
vagabundagem, com a falta de
qualificação ou com a simples má
sorte. Para os desafortunados,
bastavam o assistencialismo e a
caridade das almas generosas.
No início do século 20, ainda
prevaleciam os mandamentos de
uma ordem política e econômica
que valorizava, acima de tudo, o
respeito às normas do livre mercado. Entre elas, sobressaíam as
regras sagradas e invioláveis do
equilíbrio orçamentário e da estabilidade da moeda. A defesa do
valor externo da moeda era tarefa primordial dos governos e de
seus bancos centrais, mesmo que
custasse o aumento do desemprego ou a queda dos salários dos
trabalhadores.
No século 20, sobretudo depois
da Primeira Guerra Mundial, a
ampliação da presença das massas trabalhadoras nas cidades, a
conquista do sufrágio universal e
o avanço do pensamento socialista transformaram em problemas
sociais os fenômenos que antes
eram tomados como uma decorrência natural da conduta irregular dos indivíduos ou de circunstâncias adversas particulares.
Foi a luta social e política dos
assalariados e dependentes que
fez o desemprego irromper no
imaginário social como distúrbio
e injustiça nascidos das disfunções do processo econômico. Os
governos foram, então, obrigados
a dividir a atenção entre as demandas sociais e as medidas de
defesa da estabilidade da moeda.
Nem sempre os dois objetivos puderam ser atendidos simultaneamente.
A história dos séculos 19 e 20 pode ser contada como uma saga: a
resistência das camadas sociais
mais desprotegidas contra as forças cegas e supostamente impessoais do mercado. O século 20 foi,
sem dúvida, palco de uma batalha que, entre mortos e feridos,
deixou o saldo positivo da conquista dos direitos sociais. Essa
conquista determinou que o reconhecimento do indivíduo como
cidadão não mais dependia exclusivamente de sua posição no
circuito mercantil. O Estado social, construído a ferro e fogo pelos subalternos, impôs o reconhecimento dos direitos do cidadão,
isto é, da sua autonomia desde o
seu nascimento até a sua morte.
Ele será investido nesses direitos
desde o primeiro suspiro: o nascimento de um cidadão implica,
por parte da sociedade, o reconhecimento de uma dívida. Dívida com sua subsistência, com sua
dignidade, com sua educação,
com seu trabalho, com sua velhice.
Essa dívida da sociedade para
com o cidadão deve ser compensada por outra, a do cidadão para
com a sociedade: o dever de pagar
os impostos, de respeitar a lei, de
cooperar com o trabalho social,
enfim, de retribuir o esforço comum.
A experiência histórica mostrou
que, sob certas circunstâncias, é
possível a manutenção de um
equilíbrio relativamente estável e
dinâmico entre essas duas tendências contraditórias das sociedades modernas: de um lado, as
exigências da acumulação capitalista; de outro, as pretensões dos
homens comuns que aspiram a
uma vida digna e verdadeiramente livre, protegida dos riscos e
atropelos periodicamente produzidos pela engrenagem econômica.
A formidável arquitetura capitalista do pós-guerra permitiu
durante um bom tempo a convivência entre estabilidade monetária, crescimento rápido e ampliação do consumo dos assalariados e dos direitos sociais. O sonho durou 30 anos e, mesmo no
clima sombrio da Guerra Fria, as
classes trabalhadoras do Ocidente
desenvolvido gozaram de uma
prosperidade sem precedentes.
Nesse período ocorreram as importantes transformações no papel do Estado. As funções de garantir o cumprimento dos contratos, de assegurar a liberdade na
esfera política e econômica
-apanágios do Estado liberal-
são enriquecidas pelo surgimento
de novos encargos e obrigações:
tratava-se de regular o ciclo econômico e de criar espaços de integração social não-mercantis.
Até há pouco tempo, muita gente imaginava ser impossível recuar das políticas de pleno emprego e de proteção aos mais fracos, a
não ser à custa de retrocessos sociais e políticos só imagináveis
sob regimes de terror.
Luiz Gonzaga Belluzzo, 60, é professor
titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos
do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia
do Estado de São Paulo (governo Quércia).
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