|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Plano nasce da mistura de economia e política
Convencer a sociedade de que o programa funcionaria era o mesmo que acreditar no sucesso do então novo casamento de Liz Taylor
GUSTAVO PATU
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
O Plano Real seria, como costumavam repetir seus formuladores
e executores, "o oitavo casamento
de Elizabeth Taylor".
Em outras palavras, tratava-se
de convencer trabalhadores, empresários e investidores -e eleitores, uma vez que era um ano,
1994, de eleições presidenciais-
de que, após os fracassados Cruzado, Cruzado 2, Bresser, Verão,
Collor e Collor 2, um novo plano
contra a inflação funcionaria.
Sob descrédito geral, Liz Taylor
casara-se novamente, em 91, daquela vez com Larry Fortensky,
um trabalhador da construção civil 20 anos mais jovem que a atriz
inglesa. Os dois haviam se conhecido numa clínica de desintoxicação de álcool e drogas.
O cenário brasileiro não inspirava confiança maior. Itamar
Franco estava na Presidência após
o afastamento de Fernando Collor e, em seus primeiros oito meses no cargo, já havia demitido
três ministros da Fazenda. Luiz
Inácio Lula da Silva, ainda em
seus tempos de ameaça aos mercados, liderava as pesquisas eleitorais, seguido por Paulo Maluf.
Na economia, a inflação chegava aos 40% em janeiro de 94
-naquele ritmo, terminaria o
ano em 5.500%. O país não pagava integralmente sua dívida externa e estava fora do mapa dos investimentos estrangeiros que, na
época, inundavam os emergentes.
O acaso
Havia algo novo em gestação. O
acaso levara Itamar a nomear, em
maio de 93, seu primeiro ministro
da Fazenda de expressão, Fernando Henrique Cardoso -o antecessor, Eliseu Resende, deixara o
cargo acusado de ligações com a
empreiteira Norberto Odebrecht.
Até então, FHC, sociólogo de renome e uma das referências da esquerda nacional, chefiava o Itamaraty e estudava uma candidatura a deputado no ano seguinte.
O ministro, pouco versado nos
temas da pasta, começou sua gestão com a cantilena até hoje repetida por seus sucessores: não se
afastaria do que os economistas
chamam de políticas ortodoxas,
ou seja, combateria a inflação
com as recomendações da cartilha tradicional -juros altos e
controle dos gastos públicos.
Mas o desempenho da ortodoxia nos dois anos anteriores tampouco era animador. Afinal, os
manuais econômicos não foram
feitos para um país em que preços, salários e contratos eram
quase todos atrelados a índices de
correção monetária.
A volta dos heterodoxos
Enquanto fazia suas promessas
de bom comportamento econômico, FHC trazia para sua equipe
os papas da heterodoxia nacional:
Edmar Bacha, André Lara Resende e Pérsio Arida, mentores do
Plano Cruzado, de 1986.
Todos eram da Pontifícia Universidade Católica do Rio, de onde vieram também nomes como
Pedro Malan, Gustavo Franco e
Winston Fritsch, incorporados à
chamada equipe econômica.
Em dezembro de 93, o "oitavo
casamento de Elizabeth Taylor"
foi proclamado com todo o cuidado. Em vez de um choque econômico destinado a pegar empresários de surpresa, foi anunciada
uma estratégia gradual e fiel aos
contratos estabelecidos.
Até ali, a obra da equipe era
quase nada. Limitava-se a um
corte de três zeros na moeda nacional, cujo nome passara de cruzeiro para cruzeiro real, e ao Programa de Ação Imediata, um conjunto de medidas fiscais anódinas. Ainda assim, a preexistência
do PAI levou o novo plano a ser
batizado de FHC 2.
Política e economia no altar
Dividido em três etapas, o plano
casava política e economia. A primeira fase seria a aprovação, pelo
Congresso, do Fundo Social de
Emergência -uma autorização
para que o governo gastasse na
área social menos do que o determinado pela Constituição.
Nas negociações do FSE, aprovado pelo Congresso em fevereiro
de 94, o ministro acertou nos bastidores o apoio do PFL a sua candidatura presidencial pelo PSDB.
Viabilizada a face ortodoxa do
plano, entrou em cena -em 1º de
março, aniversário do Cruzado-
a obra-prima da bruxaria econômica nacional, a Unidade Real de
Valor. Mistura de moeda e indexador, a URV coexistia com o cruzeiro real, valia US$ 1 e corrigia salários e contratos.
Aos poucos, trabalhadores e
empresários passaram a calcular
em URV. Uma pessoa sabia
quanto ganhava em URV; um
empresário sabia quanto valiam
seus produtos em URV.
Na visão técnica da equipe econômica, a URV deveria durar até
sua plena adoção pela sociedade
-talvez até o final do ano. A visão
política, porém, era outra. FHC,
que havia deixado o cargo em
abril para concorrer ao Planalto,
precisava de resultados mais concretos para apresentar ao eleitorado. E a etapa final do plano foi
marcada para 1º de julho.
Quanto vale o real?
Sabia-se que, naquela data, o
novo dinheiro entraria em circulação. Numa estratégia inédita e
quase impecavelmente levada a
cabo, todas as cédulas e moedas
do país seriam substituídas.
A nova moeda teria o mesmo
valor da URV e do dólar em 1º de
julho, ou CR$ 2.750. Tudo correu
como previsto. Mas, para a data
fatídica, foi reservada a única
grande surpresa do plano: o real
não poderia valer menos que o
dólar, mas poderia valer mais.
E foi o que aconteceu. Em algumas semanas, US$ 1 podia ser
comprado por R$ 0,83. Os importados ficaram mais baratos, obrigando os produtores nacionais a
segurar ou a reduzir seus preços.
A inflação despencou. FHC venceu a eleição no primeiro turno.
Estava criada a versão brasileira
do que o mundo chamava de âncora cambial -a estratégia pela
qual vários países latino-americanos puserem fim a anos de inflação crônica, de aproveitar a fartura de dólares no mercado global
para segurar os preços.
O marketing do Real argumentava que o plano não se resumia a
isso. Havia também, dizia-se, um
ajuste fiscal e metas monetárias
rígidas, mostrando respeito à ortodoxia. Era falso.
Erros de cálculo
O sucesso da nova moeda tratou
de derrubar as tais metas monetárias -limites para a quantidade
de reais em circulação na economia. Como a população queria
utilizar mais e mais do novo dinheiro, as metas foram sistematicamente descumpridas e abandonadas em poucos meses.
Outro erro de cálculo teria conseqüências mais dramáticas. O
dólar barato provocou uma enxurrada de importações e viagens
ao exterior; o buraco nas contas
externas tornou o país dependente de capital externo. Acreditava-se, porém, que o problema não
era tão grave, pela então abundância de capital no mundo.
O primeiro susto veio com a crise do México, no final de 94. A âncora cambial mexicana mostrava
seu preço, e o peso sucumbia depois de perdas sucessivas das reservas em dólar do país. Mais tarde viriam as crises da Ásia, em 97,
e da Rússia, em 98.
Enquanto as turbulências se
acumulavam, crescia a desconfiança quanto ao plano brasileiro,
e o Banco Central era obrigado a
elevar os juros para atrair capital
externo. Os juros fulminaram a
promessa de equilíbrio fiscal, e a
dívida pública explodiu.
O fim do casamento
Um colecionador de estatísticas
se assustaria com os resultados do
final do primeiro mandato de
FHC, em 1998. Déficit comercial,
juros, déficit público, dívida pública, dívida externa, desemprego, quase tudo nos maiores patamares da história recente.
No entanto, a inflação, de mais
de 1% ao dia nos dias do cruzeiro
real, caminhava para pouco mais
de 1% ao ano. Uma estabilidade
nunca vista desde os anos 30,
quando os índices de preços começaram a ser apurados no país.
Foi o bastante para que FHC
derrotasse novamente Lula no
primeiro turno das eleições, prometendo manter o plano de pé. A
promessa, porém, seria descumprida na primeira quinzena de
seu segundo mandato.
Itamar voltou à história no papel de vilão. Ao assumir o governo de Minas, anunciou que não
pagaria a dívida do Estado com a
União. Não era muito mais que
uma bravata, mas bastou para
derrubar o castelo de cartas em
que havia se transformado o Real.
Gustavo Franco, último grande
defensor da âncora cambial, foi
expelido do BC, que via minguarem suas reservas em dólar. A âncora cambial foi abandonada em
15 de janeiro de 1999. Semanas depois, Armínio Fraga assumiria o
BC para implementar uma política econômica toda reformulada.
O plano chegava ao fim depois
de quatro anos e meio, mais ou
menos a mesma duração do oitavo casamento de Elizabeth Taylor
-que anunciou sua separação
em 95. Ficaram, porém, o nome
da moeda e uma inflação civilizada, hoje mantida a duras penas
por Lula e pelo sucessor de Malan
no Ministério da Fazenda, Antonio Palocci Filho.
Texto Anterior: Empresas elevam lucro em 135%, e bancos, em 1.039% Próximo Texto: Conquistas sociais da nova moeda não se sustentam Índice
|