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OPINIÃO ECONÔMICA
Uma reforma anacrônica?
RUBENS RICUPERO
Anacrônico, do ponto de
vista etimológico, é algo fora
do seu tempo próprio. Em geral, é
usado para significar que alguma
coisa se atrasou e está sendo feita
agora, quando deveria ter sido
realizada havia muito tempo. Foi
nesse sentido que o senador Nabuco de Araujo, o "Estadista do Império" do livro escrito por seu filho,
se referia, em 1870, à abolição gradual da escravatura: "Senhores,
esse negócio é muito grave, é a
questão mais importante da sociedade brasileira (...). O pouco serve
hoje, o muito amanhã não basta.
As coisas políticas têm por principal condição a oportunidade. As
reformas, por poucas que sejam,
valem muito na ocasião, não satisfazem depois, ainda que sejam
amplas". Apesar da sabedoria das
palavras, teve-se de esperar 18
anos pela abolição plena.
Em 1985, quando começava o
governo Sarney e o congresso da
Contag -não se falava tanto em
MST- reclamava reforma agrária "maciça", o principal economista agrícola brasileiro, Fernando Homem de Melo, escrevia na
"Gazeta Mercantil" dois artigos
para mostrar que medida com tamanho grau de radicalidade e
abrangência só teria se justificado
se tivesse sido feita no passado. O
ideal é que a reforma houvesse
ocorrido no auge da industrialização brasileira ou após a adoção do
Estatuto da Terra, do marechal
Castello Branco. Antes, de qualquer modo, da modernização da
agricultura no Brasil, de sua radical transformação em atividade
altamente capitalizada, intensiva
em tecnologia e responsável quase
exclusiva pelos melhores êxitos da
exportação. Mexer nisso de forma
"maciça" naquele instante seria
desorganizar o setor talvez mais
estratégico do comércio exterior.
Restava, segundo o autor, a possibilidade de promover reforma "seletiva" em áreas de conflito agudo
ou desaproveitadas.
Quem leu os artigos na época deve tê-los achado razoabilíssimos.
Por que, com efeito, convulsionar
a agricultura se, de perspectiva estritamente econômica, ela estava
preenchendo à risca o seu papel,
que é produzir alimentos para a
população urbana, gerar divisas
para a importação de bens de capital necessários à industrialização, assim como excedente de capital e mão-de-obra para a indústria? Com o tempo, a queda nas
taxas demográfica e de fertilidade,
o êxodo rural, o alívio da pressão
no interior fariam o resto, levando
a que prevalecesse no campo panorama semelhante ao dos países
avançados: propriedades cada vez
maiores trabalhadas por cada vez
menos gente. Quem imaginaria
que, 18 anos mais tarde, os conflitos agrários estariam explodindo,
em vez de desaparecerem, e o MST
se teria convertido num dos movimentos de massa mais impressionantes de nossa história?
Ora, nesse período, a agricultura
tornou-se incomparavelmente
mais moderna e produtiva, a ponto de ganhar foros de nobreza e
adotar o desgracioso neologismo
de "agronegócio". A demografia
não ficou atrás e se desacelerou
bruscamente. O que foi, então, que
deu errado? O problema é que o
país deixou de crescer, após a crise
da dívida, antes mesmo da data
dos artigos, demolindo a premissa
e condição básica da argumentação. Sem crescimento, a indústria
não foi mais capaz de absorver o
excesso de mão-de-obra expulsa
das fazendas pela mecanização, o
gado, a soja em larga escala. Até
em cidades médias do interior formaram-se cinturões de bóias-frias,
com emprego apenas sazonal, reservatório inesgotável de recrutamento dos sem-terra.
Conforme disse Celso Furtado, o
desenvolvimento brasileiro é uma
"construção interrompida". Pior,
pode ser comparado a um fruto, a
um organismo vivo, que encruou
antes de amadurecer. No desenvolvimento saudável, ao declinar
o emprego na agricultura, a indústria, em plena expansão, consome
vorazmente os trabalhadores excedentes, tendo às vezes até de recorrer a estrangeiros, como na
Alemanha e na França de 1950 a
1970. Chega então o momento em
que a economia começa naturalmente a desindustrializar-se. Nessa hora, graças à enorme produtividade industrial, já se atingiu nível de renda alto o bastante a fim
de garantir demanda para empregar nos serviços os que deixaram
de trabalhar nas fábricas.
No Brasil e na América Latina,
não é essa modalidade sã que está
acontecendo, mas a desindustrialização precoce, a indústria que
morreu na praia, antes de ter logrado gerar o nível de renda per
capita exigido pela economia de
serviços. Os setores industriais remanescentes só conseguem manter o nariz fora da água graças a
ganhos de produtividade obtidos
com as despedidas maciças. O desenvolvimento truncado traz como subprodutos o exército de reserva dos bóias-frias exigindo voltar à agricultura, os ex-operários
que formam o essencial dos 13%
de desempregados do país e os
20% da Grande São Paulo, as
massas de camelôs que ocupam
praças e ruas, os incontáveis trabalhadores informais que vivem
de biscates. Deixo de fora as óbvias
implicações em termos de violência, drogas, crime.
Essa situação não é imposta pela
natureza das coisas. É consequência de escolha política, a de resignar-se à armadilha financeira externa e interna, à ditadura dos
mercados de dinheiro. Delas só se
sai com taxas de crescimento altas,
de mais de 5% ou 6% por anos a
fio. Como tais taxas não são geralmente aceitáveis aos mercados financeiros, os que deles fazem os
árbitros de última instância condenam a sociedade, mesmo sem
querer, a um destino de desumanização e barbarismo. E, nesse futuro de sangue e lágrimas, por
mais que o Incra distribua lotes,
por mais que se reduza a taxa demográfica, a fila dos invasores de
terras e prédios não cessará de ser
engrossada pela única indústria
ainda eficiente: a usina de produção de pobres e desesperados.
Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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