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OPINIÃO ECONÔMICA
Longe dos olhos, mas...
RUBENS RICUPERO
Como está longe o Brasil
desta velha Parma, onde o
centenário de Verdi deixou vestígios por toda parte! Estive, por
motivos familiares, em Trento e
antes em Veneza, a trabalho
(acreditem, é verdade). Sem notícias de campanha ou pesquisas,
avisto das eleições mais a floresta
que as árvores.
O que dizer, nessas circunstâncias, à TV inglesa, que me pediu
um comentário? Primeiro, o significado de uma decisão em que
os dois finalistas, um, de origem
operária, o outro, primeira geração de imigrantes, não pertencem, em caráter pessoal, às classes
sociais que invariavelmente governaram o país desde a sua fundação. Segundo, serem ambos o
produto político, independentemente do local de nascimento, da
urbanização e industrialização
do centro-sul, e, especificamente,
de São Paulo. Terceiro, culminar
a disputa no cotejo entre as duas
vertentes principais das forças
partidárias de oposição ao regime
militar, eliminando a ambiguidade da aliança com antigos sustentáculos desse regime.
Tudo aponta uma conclusão:
chegamos ao fim de um ciclo, não
meramente político ou eleitoral,
mas da própria história brasileira. Os sinais são inconfundíveis.
Os velhos protagonistas que decidiram o jogo desde 1930 ou 1964,
os remanescentes do trabalhismo
varguista ou brizolista, os herdeiros dos interventores, do PSD, da
Arena, do PDS, "o maior partido
do Ocidente", até os grisalhos veteranos do Partidão ingressaram
naquela fase crepuscular de declínio que antecede o olvido. Desta
vez, os populistas, de direita ou
supostamente progressistas, não
conseguiram, como em 1989, suplantar, na faixa eleitoral que
disputam, o apelo mais poderoso
de movimento autenticamente
popular. No entanto seria prematuro anunciar-lhes a morte. Em
democracia de massas pobres e
sofridas, que jamais receberam
do Estado acesso real à educação
ou às informações, o populismo
será sempre um fator latente,
pronto a explorar as decepções e
desenganos com os governos,
mesmo populares.
É inédito, sem precedentes, ao
que me consta, em qualquer país
do Ocidente, que esteja a um passo do poder supremo um operário
de verdade, cuja história pessoal
se assemelha à de tantos pobres:
imigrante do Nordeste, perda da
mulher e do filho devido a erro de
um hospital público. Tentei lembrar exemplo anterior em outro
país, mas não encontrei nenhum,
nem nos Estados Unidos em mais
de 200 anos de democracia nem
nos europeus. Em todas as nações
ocidentais, a burguesia, de nascimento ou por cooptação de estudos, nunca deixou que o poder lhe
escapasse das mãos. Só me ocorre
um antecedente: o de Lech Walesa e o movimento Solidariedade,
registrado na Polônia, país do
Leste Europeu, e apenas na fase
de transição do comunismo ao regime atual.
O que significa isso? Fala, sem
dúvida, em favor do Brasil, das
possibilidades que abre à ascensão social, que tal fato seja possível. Ademais, parece paradoxal
que ele suceda justamente no país
da desigualdade por excelência.
Mas será mesmo um paradoxo
verdadeiro ou aparente? No fundo, são apenas as sociedades extremamente desiguais e, por essa
razão, desequilibradas, estruturalmente frágeis nas instituições
de controle do poder, que acabam
criando involuntariamente oportunidades inesperadas de mudança. É mecanismo análogo ao
que fez a primeira revolução comunista ter por cenário não a
Alemanha, conforme esperavam
os marxistas, mas a Rússia, terra
de capitalismo atrasado e tardio
e, ainda assim, só no contexto desestabilizador da derrota na Primeira Guerra Mundial.
Não quero insinuar que a perspectiva eleitoral brasileira tenha
algo de revolucionário ou radical,
longe disso. Desejo simplesmente
assinalar a absoluta excepcionalidade do que pode vir a acontecer no Brasil, seu caráter de raridade que não se repete em condições normais, quando não cochilam as chamadas elites da teoria
de Mosca e Paretto, astutas guardiãs das estruturas pelas quais se
chega ao poder: os parlamentos,
as direções partidárias, as convenções.
Chegar ao poder é árduo, mas
não passa do princípio dos desafios. Mais difícil será fazer a mudança que o poder de hoje cada
vez permite menos. Apesar de que
a explicação toda destas eleições
se encontre no veemente anseio
do povo em mudar o que está aí,
embora seja clara a rejeição de
uma política econômica que não
funcionou nem funcionará, não
hão de faltar os que, a pretexto de
ajudar os eleitos, lhes prodigarão
conselhos de continuar o que não
deu certo. E não só dar sequência
ao governo moribundo mas fazer
até o que esse teve a prudência de
evitar: tornar irreversível a orientação fatal, dando o caráter de
um Estado dentro do Estado ao
Banco Central, precisamente as
pessoas e a ideologia que nos levaram à deplorável situação a
que chegamos, com o obstinado e
monumental erro do câmbio!
Giuseppe Tommasi, "duca di
Palma e principe di Lampedusa",
atribuiu à figura romanceada do
seu bisavô, o príncipe de Salina, o
"Gattopardo" do romance, a estratégia de que os defensores do
antigo regime deveriam aderir a
Garibaldi e ao novo porque "é
preciso que tudo mude a fim de
que tudo continue como antes".
Na Sicília, funcionou. Mal sabia
Lampedusa que décadas antes,
um presidente de Minas, Antonio
Carlos, tinha dito mais ou menos
coisa parecida, ao preparar-se a
aderir à Revolução de 30. É por isso que mesmo uma eleição extraordinária, mesmo a origem ou
os compromissos sociais dos eleitos não constituem uma garantia,
mas sim uma promessa. Sua realização há de depender da dosagem de continuidade e mudança,
do acerto das decisões, da qualidade da implementação. Só assim
se poderá assegurar que a excepcionalidade de episódio inédito se
transforme em normalidade de
condições, que o país da desigualdade se converta finalmente em
terra de oportunidades para todos.
Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
E-mail -
rubensricupero@hotmail.com
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