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OPINIÃO ECONÔMICA
Um Pernambuco que deu certo
RUBENS RICUPERO
A o ler a coluna de Paulo Nogueira Batista Jr., o que sempre faço com prazer e proveito,
aprendi que Nelson Rodrigues dizia que, se o Brasil não existisse, o
Ceará e o Piauí seriam grandes
nações sul-americanas. Para não
pensarem que era ironia ou um
dos paradoxos hiperbólicos do
grande dramaturgo, achei que
distrairia talvez os leitores das
emoções e sustos das peripécias
eleitorais se lhes contasse que acabo de comprovar in loco a veracidade da afirmação.
Estive, de fato, em país que é
menor da metade de cada um daqueles Estados nordestinos e mais
se aproxima, embora não chegue
a tanto, da superfície de Pernambuco. Com pouquíssima coisa a
mais que 1% do território brasileiro e sem praticamente nenhum
recurso natural, esse país deu o
salto gigantesco de uma renda
per capita de US$ 82, em 1961
-quando o Brasil empossava Jânio Quadros-, para cerca de
US$ 9.000 agora -antes da desvalorização da crise de 1997, a
renda atingiu US$ 11.385! Quarenta anos atrás suas exportações
totalizavam US$ 41 milhões, um
oitavo apenas das importações,
ao passo que as exportações brasileiras eram de US$ 1.405 milhões,
quase 35 vezes mais que as coreanas. No início dos 70, os dois países eram ainda comparáveis, com
vantagem para o Brasil. Já em
2000, o Pernambuco dos antípodas, pois é de lá que se trata, exportava US$ 172,3 bilhões, três vezes mais que nós.
Quem chegou até aqui terá adivinhado que falo da Coréia do
Sul, pequena grande nação que
saiu destroçada da guerra de 1950
a 1953, véspera do período em que
JK tentaria fazer com que o Brasil
avançasse 50 anos em 5. Em toda
a península, as baixas do conflito
alcançaram a cifra de 4 milhões,
às quais devem ser somadas as da
2ª Guerra Mundial, terminada
cinco anos antes. Só a Coréia do
Sul teve 1.313.000 baixas, a maioria civis, vendo destruídas 43%
das indústrias e 33% das casas.
Como foi possível a esse povo recuperar-se de golpe tão aniquilador e, em menos de duas gerações,
alcançar e superar o Brasil, quase
cem vezes maior em área, com indústria e exportações, inclusive de
manufaturados, muito superiores
no início e que nunca sofreu destruição extensa de seus recursos
humanos e físicos? Não me arriscarei a explicação exaustiva de fenômeno que mereceu livros volumosos e cuja discussão envereda
às vezes pelas trilhas tortuosas da
avaliação de fatores intangíveis,
como o da ética do confucionismo
ou o papel da ajuda americana
no âmbito das prioridades da
Guerra Fria (não esquecendo, por
outro lado, que as despesas militares representaram ônus de 35%
do Orçamento e 6% do PIB
anuais).
Limito-me, por isso, a objetivo
mais simples: identificar três ou
quatro causas não-controvertidas
e examiná-las com o espírito de
tirar lições válidas para nós.
A primeira foi o esforço de
equalizar relativamente as condições sociais no ponto de partida,
mediante a reforma agrária de
1949, que limitou a três hectares a
propriedade, de cada família de
agricultores. Não estou insinuando que fizéssemos exatamente o
mesmo no Brasil, pois são óbvias
as diferenças em relação à escassez de terra. Assinalo apenas que,
em economia na época dependente do campo em mais de 80%,
a reforma equalizou o acesso ao
principal fator de produção, conforme se fizera no Japão e em Taiwan, criando as condições de demanda para a industrialização.
Conforme observou D.W. Nam, o
pai do desenvolvimento do país, a
Guerra da Coréia funcionou como nivelador adicional: "Éramos
todos igualmente pobres então".
Hoje o problema da desigualdade
reapareceu, mas sem nenhuma
comparação com a América Latina, onde jamais existiu esforço
equalizador similar.
A segunda diferença tem sido a
prioridade a uma educação disciplinada e rigorosa, na melhor tradição confuciana. Aqui, a Coréia
levava vantagem na largada,
uma vez que já dispunha de índice de mais de 90% de alfabetização. Atualmente é um dos raros,
mesmo entre os ricos, que universalizaram em quase 100% a educação secundária.
A combinação da primeira e da
segunda causas tornou possível a
terceira, o rápido desenvolvimento de tecnologia aplicada a produtos de exportação. O lema nacional é alcançar e superar os admirados -mas pouco estimados- japoneses, os antigos colonizadores. Assim como sucedeu
no desempenho na Copa, a Coréia passou à frente do Japão em
certos itens de tecnologia de informação (36% das exportações contra 27% das nipônicas), em semicondutores, por exemplo, em que
os coreanos são os primeiros exportadores de DRAMs desde 1992,
o mesmo ocorrendo em computadores LCD de painéis grandes
(desde 1998) e em várias áreas de
equipamento de telecomunicações.
Em palestra sobre a competitividade coreana a que assisti, um
dos analistas do Instituto de Pesquisas da Samsung definiu da seguinte forma a chave do êxito de
seu país: desenvolva sua própria
tecnologia, sobretudo concentrando-se em inovação do processo produtivo e em sistema de desenho autônomo. Uma boa ilustração da diferença de abordagem é em relação à indústria automobilística, introduzida no
Brasil quase 20 anos antes. Só que
nós importamos as transnacionais e seus modelos prontos, enquanto os coreanos desenvolveram carros de desenho próprio,
contratando, no começo, "designers" italianos.
A quarta razão do sucesso é a
economia voltada para as exportações, que correspondem a parcela entre 35% e 41% do PIB (com
as importações, a proporção vai a
cerca de 70%). Uma economia como a brasileira não precisaria
chegar a tanto, convindo lembrar
que, em média, no PIB dos EUA, o
peso das exportações é de 11% ou
12%. Não há dúvida, porém, que
a capacidade exportadora é que
explica por que, após a crise de
1997-1998, a Coréia do Sul zerou,
em nove meses, o déficit externo,
registra 30 meses consecutivos de
saldo comercial desde fevereiro de
2000 e reservas de US$ 110 bilhões
em expansão.
Enquanto isso, no Brasil... Eu
poderia continuar a encher colunas de comparações instrutivas,
como, por exemplo, a valorização
contínua das unidades de exportação coreanas, em contraste com
o caso brasileiro, em que o aumento dos volumes mal consegue
compensar a queda dos preços
unitários. Meu propósito não é,
contudo, repisar o óbvio e humilhar nosso orgulho com cotejos
deprimorosos.
Quero tão-somente sugerir que,
se um país menor que Pernambuco conseguiu tais resultados, deveríamos estudar sua lição de
perto. Não necessariamente para
tentar copiar o mesmo desempenho, tarefa difícil em relação a
um povo que diz precisar trabalhar 24 horas por dia e 7 dias na
semana e está ainda debatendo se
deve ou não deixar de trabalhar
no sábado.
Não sei o que nos reserva essa
combinação perversa de ansiedade eleitoral e angustiante deterioração de expectativas econômicas. Suspeito que, seja qual for o
desenlace imediato, uma saída
duradoura da crise brasileira não
poderá dispensar alguns dos ingredientes da fórmula coreana,
em dosagem diferente e adaptada
às nossas especificidades.
Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
E-mail - rubensricupero@hotmail.com
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