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OPINIÃO ECONÔMICA
Um clima inóspito
RUBENS RICUPERO
A inda que flutuássemos em
céu internacional de brigadeiro, a transição de governo no
Brasil seria uma das mais perigosas de nossa tumultuada história,
pelas razões sobejamente conhecidas. Para remate desses males
internos, essa complicada mudança haverá de cumprir-se dentro de horizonte mundial que escurece ameaçadoramente e no
qual o espaço para a autonomia
política ou econômica se estreita
a olhos vistos.
Seria tranquilizador se pudéssemos acreditar que o contexto externo não é tão importante assim.
A verdade, no entanto, é que o
mundo exterior nos impõe às vezes limitações quase insuperáveis.
Por exemplo, por que terá sido
que, a partir do golpe brasileiro
de 1964, quase todos os países latino-americanos tombaram, um
após o outro, sob o domínio de ditaduras anticomunistas repressivas, inspiradas pela doutrina da
segurança nacional?
Como se explica que isso ocorresse tanto com países agudamente instáveis, como a Bolívia
da época, quanto com modelos
até então de estabilidade relativa,
como o Chile? Mera coincidência,
contágio do exemplo ou reflexo
em parte do endurecimento da
Guerra Fria nos anos 60, do temor do alastramento da revolução cubana, do ativismo beligerante da política de Johnson, cuja
expressão principal foi o atoladeiro do Vietnã, mas também teve
influência deletéria na República
Dominicana, na Grécia, na Indonésia?
Se fosse fácil abstrair do envoltório que nos cerca, por que será
que os anos 80 foram uma década
perdida para todas as vítimas da
crise da dívida externa, incluindo
nações tão diferentes como o México, o Brasil, o Peru e a Argentina?
Em sentido inverso, quantos
brasileiros compreendem que o
êxito de Juscelino foi viabilizado
pela recuperação econômica da
Europa e do Japão do pós-guerra,
pela fabulosa fase de expansão da
economia mundial que os franceses chamam de "os 30 anos gloriosos", pelo retorno dos financiamentos à exportação, que possibilitaram a implantação da indústria automobilística, naval e tantas outras, mesmo após a ruptura
com o FMI? Isso sem mencionar o
degelo nas relações internacionais que se seguiu à morte de Stálin, ao fim da Guerra da Coréia e
à etapa francesa do conflito da
Indochina, à relativa predominância de regimes democráticos
na América do Sul da segunda
metade dos 50.
Não estou querendo sugerir que
o contorno internacional nos determina de modo absoluto, o que
seria exagero. Não há como negar, todavia, que esse contorno
pode complicar-nos a vida no
momento preciso em que as agruras internas ameaçam já engolir-nos. Aliás, o agravamento recente
das angústias domésticas deve-se,
em larga medida, a fatores externos: a recessão americana e mundial de 2001, o colapso argentino,
a queda dos preços das exportações, a "fuga para a qualidade"
dos capitais etc.
Dessa perspectiva, lamento dizer que o panorama visto de Nova York, onde escrevo, se apresenta carregado e cor de chumbo. Depois de três meses de ausência, encontro país crispado com o presente e assustado com o futuro. O
ataque contra o Iraque é percebido como fatalidade inevitável que
não entusiasma ninguém. Os discursos de Al Gore e do senador
Daschle ousaram clamar o que
outros cochichavam: o questionamento dos reais motivos da urgência da operação, a suspeita de
alguns democratas de que ela
obedece mais à lógica política da
vitória nas eleições parlamentares de novembro do que a um risco iminente de parte de Bagdá.
Nos meios diplomáticos da ONU,
a estratégia de assegurar para
sempre a supremacia militar dos
EUA e de justificar ataques preventivos parece difícil de conciliar
com o princípio de segurança coletiva, base da Carta das Nações
Unidas. O espetáculo deprimente
dos "bulldozers" demolindo o
pouco que resta da Autoridade
(sic) Nacional Palestina aumenta
a sensação de calado desespero.
As páginas econômicas parecem o Livro das Lamentações: redução do índice de produção industrial, de confiança dos consumidores, quedas brutais da Bolsa,
recuo da média dos indicadores,
aumento do desemprego, temor
de nova recessão, refúgio dos capitais no mercado imobiliário e
consequente risco de criar bolha
especulativa no setor, paralisia
dos bancos devido às perdas gigantescas com os escândalos empresariais, comparações desprimorosas com a depressão japonesa. Por cima de tudo, a incerteza
quanto ao efeito de um ataque ao
Iraque nos preços do petróleo, nos
países importadores como os da
Europa (e o Brasil), na própria
economia americana.
Nem sempre a adversidade externa é invencível. Um exemplo
foi a chamada "Era Vargas", iniciada (e em parte motivada) pela
crise de 29 e a Grande Depressão.
O país teve de suspender o pagamento da dívida e viveu o estreitamento das opções, espremido
entre o stalinismo e o fascismo,
culminando com a Segunda
Guerra. Não obstante, muito cedo
saiu da recessão, impulsionou a
industrialização, construiu a usina de Volta Redonda. No seminário pelos 50 anos do BNDES, comentei a declaração de alta autoridade brasileira, que dizia querer superar por completo o legado
daquela era, desejando por certo
significar outra coisa, a herança
negativa daqueles anos, e não sua
obra em bloco. Seguramente não
faltam crimes e erros a condenar
no período, bastando exemplificar com a ditadura fascistizante
do Estado Novo e seus terríveis
atentados, para sempre apontados à execração dos brasileiros
por Graciliano em "Memórias do
Cárcere".
O senso de equilíbrio e medida
obriga, porém, a reconhecer que
tanto na primeira quanto na última e trágica fase da "Era Vargas"
houve realizações admiráveis que
nem sempre soubemos preservar
na sua integridade, tais como o
Patrimônio Histórico, o BNDES,
a Fundação Getúlio Vargas, a Petrobras e a Companhia Siderúrgica Nacional, que hoje deixamos
melancolicamente passar a mãos
estrangeiras. De todo o legado da
"era Vargas", talvez o mais valioso tenha sido o exemplo de alguns
brasileiros da época, capazes de
reagir e vencer um clima externo
inóspito. Como eles, teremos hoje
de provar que, se nos faltar a "fortuna" desejada por Maquiavel, só
nos resta um caminho: deveremos
redobrar a nossa "virtù", isto é, a
capacidade de buscar em nós
mesmos as forças para triunfar
sobre a adversidade.
Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
E-mail - rubensricupero@hotmail.com
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