São Paulo, domingo, 29 de setembro de 2002

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LUÍS NASSIF

Chico Viola, o rei da voz

A té onde a memória alcança, não me lembro do dia da morte de Francisco Alves, o Chico Viola. Eu tinha apenas dois anos. Mas me lembro anos depois de minha mãe contando que nevou em Poços de Caldas, a serra de São Domingos cobriu-se de branco e ele apertou minha irmã Regina junto ao peito, para proteger do frio seus dois meses de vida.
Só vim a conhecer plenamente Chico Viola lá pelos meus dez anos. Em casa, havia uma profusão de discos de 78 rotações de diversos cantores e gêneros, colecionados por meu pai. Nenhum Chico Alves.
Na época ganhei um radinho de pilha, e toda noite dormia com ele. Foi numa das noites que ouvi pela primeira Chico Viola. Nem me lembro da música. Só me recordo de que o arranjo era longo, de um daqueles maestros maravilhosos da rádio Nacional, e tomava quase metade da gravação. E a voz de Francisco Alves entrava da metade para a frente, aquela voz de barítono, romântico, que me fazia sentir saudades de lugares que nunca vi.
Levantei da cama e fui direto cobrar explicações da dona Teresa. Quem era esse Chico Viola, que tinha me chapado? Ela me explicou que havia sido um dos maiores cantores brasileiros, que havia morrido em um desastre na Dutra. Cobrei-lhe explicações: "Como a senhora nunca me falou dele, se ele é melhor do que Carlos Galhardo?". Para minha surpresa, dona Teresa admitiu que era melhor do que seu ídolo, mas não sabia a razão de nunca ter me falado dele. E me mandou ir para a cama, que já era tarde.
O repertório de Chico Alves sempre nos acompanhou em nossas serenatas, ao lado dos modernos seresteiros que surgiam, como Chico Buarque e Sidney Miller. "Risque" (Ari Barroso), "Caminhemos" (Herivelto Martins), "Serra da Boa Esperança" (Ary e Lamartine Babo) foram lançadas pelo mestre. Não houve cantor na história -nem mesmo Orlando Silva- que tenha acumulado lista tão impressionante de sucessos. A valsa "Boa Noite, Amor" (José Maria de e Francisco Matoso), "A Mulher que Ficou na Taça" (com Orestes Barbosa), "Foi Ela" (Ary Barroso), "Aquarela do Brasil" (Ary Barroso), "Onde o Céu Azul é Mais Azul" (Alcyr Pires Vermelho, João de Barro e Alberto Ribeiro), "Caminhemos" (Herivelto Martins) e "Cadeira Vazia" (Lupicínio Rodrigues e Alcides Gonçalves) são apenas alguns de uma lista interminável de sucessos.
Chico Alves começou em 1918, quando lançou "Pé de Anjo", de Sinhô, e prosseguiu nos anos 20, com "Malandrinha", de Freire Júnior, uma de minhas serestas prediletas. No ano da sua morte emplacou um de seus maiores sucessos, a marcha-rancho "Confete" (David Nasser e Jota Júnior). Seu enterro, em 28 de setembro de 1952, foi acompanhado por uma multidão de 200 mil a 500 mil pessoas.
Quando comecei a trabalhar na imprensa, por volta de 1970, Chico Alves era quase um cantor maldito. A bossa nova consagrara um novo estilo de interpretação, e cometia-se a bobagem de desqualificar qualquer estilo diferente. Ora, dentro de um estilo que foi soberano, dos anos 20 aos 50, Francisco Alves foi dos maiores, talvez só suplantado por Orlando Silva.
Além disso, havia muitas críticas quanto ao seu caráter. Acusavam-no de "roubar" músicas de compositores menos conhecidos. Chegava-se ao ponto de não lhe atribuir nenhuma das 132 músicas oficialmente de sua autoria.
Ao longo dos anos, Chico foi sendo gradativamente poupado pela crítica, porque esquecido. Um homem sem caráter, como o descrito pela crítica da época, certamente não arriscaria a lançar na música Carmen Miranda e Orlando Silva, sabendo que poderia desbancá-lo como maior cantor brasileiro. E um orelha-de-pau jamais ousaria, depois de acertar com Sinhô e Freire Júnior, ir ao Estácio e descobrir a riqueza musical de Ismael Silva, Nilton Bastos, Bide e Marçal; Brancura. O repertório dos novos sambistas, aliás, permitiu um conjunto de 24 gravações magistrais de Chico Alves em dupla com Mário Reis.
Pode-se alegar que ele impunha parcerias a compositores menos conhecidos. Mas como explicar que, sendo o orelha-de-pau, como pretendiam os críticos, tivesse composto mais de 20 músicas com David Nasser, mais conhecido jornalista brasileiro da época e longe de ser um compositor indefeso?
Neste sábado, 50 anos da morte do cantor, em todo reduto seresteiro, de norte a sul do país, nas casas de empresários, profissionais liberais, no centro e na periferia, nos botequins do Brasil, na memória de intelectuais e de amantes da música brasileira, houve três minutos de silêncio, para que algum cantor dó-de-peito se levantasse e cantasse "A Voz do Violão", de Horácio Campos ("Não queira meu amor saber da mágoa / que sinto quando a relembrar-te estou / atestam os meus olhos rasos d'água / a dor que a tua ausência me causou"). E, depois dela, ergueram seu brinde à memória do mestre.

E-mail - LNassif@uol.com.br


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