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LUÍS NASSIF
Chico Viola, o rei da voz
A té onde a memória alcança, não me lembro do dia da
morte de Francisco Alves, o Chico
Viola. Eu tinha apenas dois anos.
Mas me lembro anos depois de
minha mãe contando que nevou
em Poços de Caldas, a serra de
São Domingos cobriu-se de branco e ele apertou minha irmã Regina junto ao peito, para proteger do frio seus dois meses de vida.
Só vim a conhecer plenamente
Chico Viola lá pelos meus dez
anos. Em casa, havia uma profusão de discos de 78 rotações de diversos cantores e gêneros, colecionados por meu pai. Nenhum
Chico Alves.
Na época ganhei um radinho
de pilha, e toda noite dormia
com ele. Foi numa das noites que
ouvi pela primeira Chico Viola.
Nem me lembro da música. Só
me recordo de que o arranjo era
longo, de um daqueles maestros
maravilhosos da rádio Nacional,
e tomava quase metade da gravação. E a voz de Francisco Alves
entrava da metade para a frente,
aquela voz de barítono, romântico, que me fazia sentir saudades
de lugares que nunca vi.
Levantei da cama e fui direto
cobrar explicações da dona Teresa. Quem era esse Chico Viola,
que tinha me chapado? Ela me
explicou que havia sido um dos
maiores cantores brasileiros, que
havia morrido em um desastre
na Dutra. Cobrei-lhe explicações:
"Como a senhora nunca me falou dele, se ele é melhor do que
Carlos Galhardo?". Para minha
surpresa, dona Teresa admitiu
que era melhor do que seu ídolo,
mas não sabia a razão de nunca
ter me falado dele. E me mandou
ir para a cama, que já era tarde.
O repertório de Chico Alves
sempre nos acompanhou em nossas serenatas, ao lado dos modernos seresteiros que surgiam, como Chico Buarque e Sidney Miller. "Risque" (Ari Barroso), "Caminhemos" (Herivelto Martins),
"Serra da Boa Esperança" (Ary e
Lamartine Babo) foram lançadas pelo mestre. Não houve cantor na história -nem mesmo
Orlando Silva- que tenha acumulado lista tão impressionante
de sucessos. A valsa "Boa Noite,
Amor" (José Maria de e Francisco Matoso), "A Mulher que Ficou
na Taça" (com Orestes Barbosa),
"Foi Ela" (Ary Barroso), "Aquarela do Brasil" (Ary Barroso),
"Onde o Céu Azul é Mais Azul"
(Alcyr Pires Vermelho, João de
Barro e Alberto Ribeiro), "Caminhemos" (Herivelto Martins) e
"Cadeira Vazia" (Lupicínio Rodrigues e Alcides Gonçalves) são
apenas alguns de uma lista interminável de sucessos.
Chico Alves começou em 1918,
quando lançou "Pé de Anjo", de
Sinhô, e prosseguiu nos anos 20,
com "Malandrinha", de Freire
Júnior, uma de minhas serestas
prediletas. No ano da sua morte
emplacou um de seus maiores sucessos, a marcha-rancho "Confete" (David Nasser e Jota Júnior).
Seu enterro, em 28 de setembro
de 1952, foi acompanhado por
uma multidão de 200 mil a 500
mil pessoas.
Quando comecei a trabalhar
na imprensa, por volta de 1970,
Chico Alves era quase um cantor
maldito. A bossa nova consagrara um novo estilo de interpretação, e cometia-se a bobagem de
desqualificar qualquer estilo diferente. Ora, dentro de um estilo
que foi soberano, dos anos 20 aos
50, Francisco Alves foi dos maiores, talvez só suplantado por Orlando Silva.
Além disso, havia muitas críticas quanto ao seu caráter. Acusavam-no de "roubar" músicas de
compositores menos conhecidos.
Chegava-se ao ponto de não lhe
atribuir nenhuma das 132 músicas oficialmente de sua autoria.
Ao longo dos anos, Chico foi
sendo gradativamente poupado
pela crítica, porque esquecido.
Um homem sem caráter, como o
descrito pela crítica da época,
certamente não arriscaria a lançar na música Carmen Miranda
e Orlando Silva, sabendo que poderia desbancá-lo como maior
cantor brasileiro. E um orelha-de-pau jamais ousaria, depois de
acertar com Sinhô e Freire Júnior, ir ao Estácio e descobrir a
riqueza musical de Ismael Silva,
Nilton Bastos, Bide e Marçal;
Brancura. O repertório dos novos
sambistas, aliás, permitiu um
conjunto de 24 gravações magistrais de Chico Alves em dupla
com Mário Reis.
Pode-se alegar que ele impunha parcerias a compositores
menos conhecidos. Mas como explicar que, sendo o orelha-de-pau, como pretendiam os críticos, tivesse composto mais de 20
músicas com David Nasser, mais
conhecido jornalista brasileiro
da época e longe de ser um compositor indefeso?
Neste sábado, 50 anos da morte
do cantor, em todo reduto seresteiro, de norte a sul do país, nas
casas de empresários, profissionais liberais, no centro e na periferia, nos botequins do Brasil, na
memória de intelectuais e de
amantes da música brasileira,
houve três minutos de silêncio,
para que algum cantor dó-de-peito se levantasse e cantasse "A
Voz do Violão", de Horácio
Campos ("Não queira meu amor
saber da mágoa / que sinto quando a relembrar-te estou / atestam
os meus olhos rasos d'água / a
dor que a tua ausência me causou"). E, depois dela, ergueram
seu brinde à memória do mestre.
E-mail - LNassif@uol.com.br
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