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OPINIÃO ECONÔMICA
Minas não há mais
RUBENS RICUPERO
Você, caro leitor, eu, que escrevo de Genebra, as pessoas
que nos cercam, pensamos todos
que somos indivíduos "normais".
Acreditamos que, após a tempestade, vem a bonança. Diante de
uma guerra absurda, achamos
que é um acesso temporário de
loucura. Cedo ou tarde há de passar, como tudo passa, e voltaremos à "normalidade". Mas e se
descobríssemos que a normalidade deixou de existir? Ou melhor,
que o anormal virou normal, o
preto tornou-se branco, o "ataque
preventivo" substituiu a guerra
como "ultima ratio"? Se, depois
da "banalidade do mal" burocratizado e impessoal, começássemos
a viver a banalização da guerra?
Como ficariam, então, os políticos e diplomatas que apostam numa reconciliação entre os ocidentais, após o conflito? E as autoridades econômicas, no Brasil e um
pouco em toda a parte, esperançosas da retomada da economia
mundial, de um retorno rápido
aos mercados de capital? Sei que a
hipótese parece absurda. É como
uma novela suíça, depois filmada, sobre uma daquelas aldeias
alpinas escondidas nas dobras
das montanhas, mergulhada em
escuridão durante os intermináveis meses de inverno. Um dia, alguém, "iluminado" por Nostradamus, anuncia que, a partir daquele ano, o sol não voltará mais.
E se, do mesmo modo, o calor, a
energia da paz deixassem de
aquecer-nos, não para sempre,
mas, digamos, por quatro ou cinco anos de inverno, a duração de
um mandato renovado de presidente americano?
Absurdo, inverossímil, dirão vocês. Será de fato assim? Vivemos
em tempos absurdos e, em dias
como estes, absurda é a hipótese
racional, razoável, a que pouco
tem em comum com a natureza
da época. Para ser absurda, a hipótese teria de estar em contradição com os homens, as condições
e as idéias ou seria preciso que estes três elementos mudassem.
Ora, os homens são os mesmos e,
ao menos por enquanto, os moderados, favoráveis à diplomacia, à
abordagem multilateral do consenso, estão mais por baixo do
que nunca. As condições vêm se
deteriorando há muito tempo,
desde meados dos 90, quando as
crises financeiras passaram a
amiudar-se a intervalos de dois
anos e os episódios de violência
em larga escala começaram a
emendar um no outro: Bósnia,
Kosovo, 11 de setembro, Afeganistão, quase Caxemira, recrudescimento da Intifada e da repressão,
Iraque. Nem o fundamentalismo
islâmico, nem o terrorismo suicida, nem o conflito palestino-israelense desapareceram ou se
atenuaram. Ao contrário, focos
infecciosos aparentemente em
vias de sarar como o Irã e a Coréia do Norte foram devolvidos à
situação de ameaças.
Quanto às idéias, para quem
não as conhece, o que não falta
são livros, artigos, discursos sobre
o que inspira a atual ofensiva.
Elucubrações de lunáticos eufemisticamente chamados de neoconservadores ou doutrinas oficiais sobre segurança absoluta,
ataque preventivo, superioridade
militar permanente, exportação
da democracia ocidental ao
Oriente Médio, está tudo ali, nos
documentos facilmente acessíveis
na internet. Quando pela primeira vez ouviu-se o discurso sobre o
"eixo do mal", pensou-se que era
artifício de retórica, força de expressão. Ninguém acreditou que
fosse o anúncio de decisão definitiva de atacar o número 1 da lista,
idéia premeditada que nada,
nem a ONU, nem os inspetores,
nem os apelos do papa e dos aliados, nem as gigantescas manifestações de opinião pública conseguiriam impedir. A tendência
agora é achar que foi só o Iraque,
para exemplo e escarmento dos
demais, como antes se julgava
que seriam tão-somente os talebans e o Afeganistão. Tomara
que seja verdade -mas e se não
for?
O mundo desesperadamente
necessita de reconciliação e paz
para recolher e juntar os pedaços
em que foi estilhaçado pela guerra. Está tudo em escombros, a
ONU, para começar, mas também a União Européia, a aliança
atlântica, a Liga Árabe, os vínculos com a Turquia, o apoio que
faltou dos vizinhos imediatos, Canadá e México, dos países de
maior peso da América Latina.
Contudo, para reconciliar esse
mundo disperso, não basta parar
com a guerra, esta e as seguintes.
É preciso que a ajuda humanitária e a reconstrução do Iraque se
façam genuinamente por meio da
ONU, edificando o consenso e o
entendimento como bases de um
sistema multilateral revigorado.
Querer impor no grito a configuração do Iraque e do mundo após
o conflito tornará impossível reconciliar os Estados Unidos, de
um lado, a França, a Alemanha,
a Rússia, do outro. Sem isso, as
rachaduras atuais tendem a se
tornar permanentes. Como imaginar, por exemplo, que seja possível, dentro de dois meses, reunir
o G-8, em junho, em Evian, do outro lado do lago de Genebra, o
presidente Bush vindo a um encontro na França, do qual Chirac
é anfitrião e presidente? É viável,
nesse clima, cogitar de avanços
na reunião da Organização Mundial do Comércio, em Cancún, em
setembro, em matéria de agricultura, tema no qual os países-chave são os Estados Unidos e a
França?
Pode ser que as más surpresas
da guerra ou da economia, as
eleições americanas de 2004
transformem esse panorama. Se,
para melhor, não sabemos, mas
será certamente diferente. Não se
poderá voltar ao que era porque
esta guerra destruiu para sempre
o que existia. Os poetas sabem
que é impossível voltar para a casa paterna. Eliot dizia que o lar
não é o lugar para onde se volta,
mas o lugar do qual se parte. O José, de Drummond:
"Quer abrir a porta, / não existe
porta; / quer morrer no mar, / mas
o mar secou; quer ir para Minas,
Minas não há mais".
Só lhe resta, sozinho no escuro,
marchar qual bicho-do-mato.
Para onde?
Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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