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OPINIÃO ECONÔMICA
Reconstruindo muros
RUBENS RICUPERO
A imagem do povo demolindo o Muro de Berlim com
martelos e picaretas foi o símbolo
visual que resumia a promessa
dos anos 90: a abolição de todas
as barreiras -entre as economias, pela ação da liberalização e
da globalização; entre os homens,
pelo fim da confrontação da
Guerra Fria e do apartheid. Doze
anos depois, os dirigentes europeus discutem em Sevilha como
edificar muralha contra os imigrantes do Terceiro Mundo, o gabinete israelense decide erguer
cerca para impedir a infiltração
de terroristas palestinos, o país
mais rico do mundo multiplica as
barreiras contra o aço, os produtos sensíveis, a agricultura.
O pressuposto da grande ilusão
do fim do século 20 era o desaparecimento das ameaças externas
com a desintegração da União
Soviética. Parecia realizar-se a
profecia brandida contra os americanos por Georgi Arbatov, conselheiro de Gorbatchov: "Faremos
a vocês uma coisa terrível -vamos privá-los de um inimigo!".
Por um momento, o incidente do
avião-espia, no início do governo
Bush, dava a impressão de que a
China tomaria o lugar da URSS
como o "inimigo estratégico". Fora os chineses, questão de longo
prazo, os problemas de segurança
se restringiam a áreas periféricas
e irrelevantes: Afeganistão, Somália, Serra Leoa. Pacificados
Kosovo e Bósnia, o que impediria
que a globalização dos mercados
e o enriquecimento ilimitado se
impusessem sem rivais sobre todas as outras preocupações?
Os atentados de 11 de setembro,
o pânico -até hoje não-esclarecido- do antraz, o alarma renovado a cada 15 dias contra possíveis
ataques iminentes com bombas
radioativas "sujas" ou mesmo artefactos nucleares "limpos" mudaram por completo a situação.
Mais até que nos tempos da Guerra Fria, as ameaças à segurança
entraram no íntimo do coração
americano, ferido pela perda de
milhares de vidas inocentes. Desde então, não valem mais as certezas e prioridades de ontem. A
primeira realidade a afirmar-se é
a do Estado sobre os mercados
abalados por escândalos e bolhas
especulativas. Um governo surgido das forças mais conservadoras
americanas, as que propugnam a
diminuição do tamanho e a influência do aparato estatal, é paradoxalmente o primeiro em
muitos anos a criar um ministério novo, o da segurança interior,
com milhares de funcionários e
orçamento de US$ 37 bilhões!
Ao mesmo tempo em que a do
Estado, impõe-se a primazia do
político sobre o econômico, do interesse nacional sobre tratados
multilaterais, da perspectiva local
sobre a global. Passam a segundo
plano as considerações de equilíbrio orçamentário e aprovam-se
aumentos de despesas que garantem às indústrias de defesa opulentas encomendas. Engaveta-se
o Protocolo de Kyoto, "desassina-se" (o neologismo em inglês é "unsign") o tratado estabelecendo a
Corte Penal Internacional, enquanto se firma a Lei Agrícola,
que aumenta em 75% os subsídios domésticos. Volta-se a lembrar a famosa frase do congressista americano, segundo a qual
"toda política é local". A mensagem é inconfundível: não é o global que determina o local, conforme querem os adeptos da globalização, mas o contrário.
A partir daí, está aberto o caminho para que os interesses dos siderurgistas de Virgínia Ocidental
venham antes que os de Volta Redonda ou do vale do Ruhr, os dos
produtores de pêras em conserva
da Califórnia desloquem os da
África do Sul e os de suco de laranja da Flórida deixem à margem os de Ribeirão Preto. A ascensão do nacionalismo econômico não se manifesta só na sucessão de medidas de proteção ao
aço, à agricultura, na recusa de
regras razoáveis de antidumping.
A reforma em preparo da lei de
impostos sobre grandes corporações visa a castigar as que transferiram as sedes "offshore" e favorecer as empresas americanas em
relação àquelas cujo controle passou a europeus ou estrangeiros
em geral. Cai assim outro mito da
globalização: o de que a nacionalidade, o controle ou a sede das
transnacionais não tinham a menor importância.
Embora aparentemente díspares, todas essas iniciativas apresentam uma certa coerência, pois
decorrem da mesma lógica do poder: cada uma delas visa a atender interesses locais ou nacionais
e, por esse meio, obter em retorno
apoio para aumentar o poder do
Estado. Não é outra a razão pela
qual se dá satisfação às regiões
agrícolas ou siderúrgicas a fim de
ganhar as eleições para o Congresso e consolidar a capacidade
do governo para usar o poder nacional com desenvoltura. Os europeus queixam-se dos americanos,
mas agem da mesma forma. O
motivo que inspira as ações contra os imigrantes não é econômico. Por imperativo demográfico, a
Europa está condenada a depender da mão-de-obra estrangeira.
A questão é política: evitar o
avanço da extrema direita. Por
outro lado, em matéria de protecionismo agrícola ou de qualquer
gênero, os europeus não precisam
de lições de ninguém.
É bem sabido que uma anterior
encarnação da lógica do poder, a
do nacionalismo das grandes potências européias, redundou na
Primeira Guerra Mundial, pondo
fim à globalização vitoriana. Haverá perigo de que a história se repita como tragédia ou como farsa? É talvez prematuro afirmar,
pois os sinais são contraditórios. É
indiscutível, porém, que a angústia aumenta à medida que se volta a reedificar muros, a reerguer
cercas, a de novo erigir barreiras
separando os seres humanos ou
fechando as economias às exportações dos fracos e pobres.
Será que os edificadores das novas barreiras terão mais êxito do
que os construtores do Muro de
Berlim? A julgar pelo que aconteceu à Muralha da China, aos muros erguidos pelos romanos contra os bárbaros ou às fortalezas
dos cruzados na Terra Santa, o
destino dos muros parece ser, cedo ou tarde, virar curiosidade arqueológica ou atração turística.
Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
E-mail -
rubensricupero@hotmail.com
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