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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Os profetas do caos
ALOIZIO MERCADANTE
A crise que o país vive neste
momento -a quinta em oito anos de vigência da atual política econômica- é extremamente complexa e grave, não obstante
o governo e os especuladores tentarem, simplória ou intencionalmente, atribuí-la ao quadro eleitoral. Este, obviamente, influi na
formação de expectativas, mas está muito longe de ser determinante da dinâmica dos mercados financeiros. Particularmente se, como no caso brasileiro, as forças
majoritárias de oposição e seu
candidato têm uma atitude clara,
consequente e responsável em relação à forma de implementar as
mudanças propostas -veja-se,
por exemplo, a "Carta ao Povo
Brasileiro", recentemente apresentada por Lula.
A gravidade da crise decorre da
convergência de diversos vetores,
entre os quais quero destacar três
que me parecem mais relevantes.
Em primeiro lugar, a atual crise
internacional de crédito e financiamento, ao contrário das anteriores, que se originaram nos
"mercados emergentes", deriva
do processo de ajustamento da
economia norte-americana após
o esgotamento do ciclo de expansão dos anos 90. As medidas anticíclicas adotadas -redução de
impostos, aumento dos gastos militares, injeção de bilhões de dólares em empresas aéreas, estabelecimento de medidas protecionistas em diversos setores, subsídios
à agricultura, entre outras- não
foram suficientes para dar sustentabilidade à reativação da economia e restabelecer a confiança dos
investidores, abalada pelos episódios da Enron e da WorldCom e
pelas evidências de desajustes em
outras corporações.
Trata-se, portanto, de uma crise
profunda e, provavelmente, duradoura, cujas consequências sobre
a liquidez internacional e sobre o
fluxo de capitais para os países
periféricos tendem a ser muito negativas. A inadimplência internacional nos primeiros cinco meses
deste ano já atinge US$ 120 bilhões; quase todos os países latino-americanos tiveram suas classificações de risco aumentadas e
já enfrentam dificuldades para
obter financiamento externo. No
caso brasileiro, a captação de recursos externos para a rolagem
das dívidas das empresas já caiu
a 65% das necessidades.
Em segundo lugar, os efeitos
dessas turbulências externas no
núcleo do capitalismo financeiro
global foram amplificados artificialmente pela atitude do governo Fernando Henrique, que,
diante da possibilidade de vitória
de Lula nas eleições, desencadeou
ofensiva para deter o avanço da
oposição, usando todos os meios à
disposição do governo -dos
grampos ilegais ao terrorismo financeiro mais irresponsável.
Apostou no caos para apresentar
seu candidato -também o preferido pelos especuladores internacionais- como a única opção à
crise. Repete, assim, o comportamento das elites, que, historicamente, comandaram o Brasil e
que nunca titubearam em prejudicar o país e impor sofrimentos à
população para preservar seu poder e seus privilégios.
Por último, embora esses vetores sejam relevantes na configuração da crise, seus efeitos desestabilizadores só são "eficazes"
porque o próprio modelo econômico implantado pelo governo
FHC é estruturalmente frágil e insustentável a médio prazo. São
precisamente esses desequilíbrios
estruturais -particularmente
nas áreas fiscal e externa- que
facilitam a propagação dos efeitos
da crise internacional e realimentam a instabilidade econômica.
É fácil visualizar como operam
tais mecanismos. De uma situação de relativo equilíbrio das contas externas em 1994, o país passou a depender fortemente da
captação de recursos externos
-foram mais de US$ 58 bilhões
em 2001- para cobrir o déficit
nas transações correntes do balanço de pagamentos e as amortizações da dívida externa. Não é
possível manter um modelo de financiamento da economia desse
tipo se o aumento dos passivos em
dólar -o estoque de investimentos estrangeiros no país mais a dívida externa- não é compensado pelo crescimento das receitas
de exportação, de forma a financiar os encargos financeiros -juros e remessa de lucros daí resultantes. Entre 1994 e 2001, com o
forte crescimento do passivo externo (mais de US$ 200 bilhões),
as despesas com juros e remessas
de lucros aumentaram 107%, enquanto o crescimento das receitas
de exportação não chegou a 34%.
Tampouco é viável manter um
processo exponencial de endividamento público como o verificado nestes oito anos, decorrente
principalmente dos juros elevados associados ao modelo de financiamento externo da economia. O aumento da dívida mobiliária federal foi brutal -de R$
61,5 bilhões em dezembro de 1994
para R$ 708 bilhões em maio passado-, apesar do crescimento
sem precedentes da carga tributária e da venda de cerca de 76% do
patrimônio público. Com as taxas
básicas de juros reais muito mais
elevadas do que a taxa de crescimento do PIB real, o modelo leva
necessariamente a uma deterioração da situação financeira do
setor público (relação dívida/
PIB), a menos que se produzam
superávits primários gigantescos
e/ou que se submeta o país a um
brutal ajuste recessivo. Entre 1994
e 2001, enquanto o crescimento
acumulado do PIB real foi de
aproximadamente 18%, a capitalização das taxas de juros reais vigentes no período atingiu mais de
144%. Ou seja, tanto pelo lado externo como pelo fiscal, o modelo é
insustentável a médio prazo.
Essa fragilidade estrutural e o
próprio acordo com o FMI dificultam a adoção de políticas anticíclicas, que poderiam favorecer o
crescimento do PIB e da arrecadação e melhorar a situação fiscal. Assim, ficamos presos na armadilha financeira: o aumento
do risco-país impede a queda da
taxa de juros e eleva o câmbio,
aumentando o custo fiscal da dívida interna, enquanto a crise externa e as medidas protecionistas
norte-americanas limitam a expansão das exportações. Nesse
contexto, não é difícil perceber
que o caos prenunciado pelos especuladores e pelo governo não se
originaria da mudança desse modelo econômico, mas, sim, de sua
continuidade. Portanto, diferentemente do que se tenta impingir
à opinião pública, o país necessita
é do rompimento dessa lógica
perversa. Para isso, temos de atacar os problemas fundamentais
da economia real, e não nos limitarmos a administrar a agenda
imposta pelos profetas do caos
-os daqui e os de fora.
Aloizio Mercadante, 48, é economista e
professor licenciado da PUC e da Unicamp, deputado federal por São Paulo e
secretário de Relações Internacionais do
Partido dos Trabalhadores.
Internet:
www.mercadante.com.br
E-mail -
dep.mercadante@camara.gov.br
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