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ANÁLISE
Todos perdem com fracasso de Doha; Brasil perde mais
Aposta do Itamaraty de aceitar proposta irritou aliados e, ao final, não vingou
Mudança de posição do Brasil inviabiliza G20, grupo de emergentes liderado pelo país e visto pelo governo como trunfo diplomático
CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA
Todos perdem com o fracasso da Rodada Doha, mas o Brasil, à primeira vista, perde mais.
Todos perdem se se levar em
conta o ganho que surgiria para
os países em desenvolvimento
de um acordo realmente equilibrado e que justificasse plenamente o nome completo da negociação que é Agenda Doha de
Desenvolvimento.
No caso do Brasil, os números que foram apresentados à
delegação brasileira pelo comando da OMC pareciam suculentos a ponto de levá-la a
uma guinada ainda mal explicada, apoiando a proposta do
diretor-geral, Pascal Lamy, que
não é substancialmente muito
diferente do que vinha sendo
posto à mesa nas negociações
técnicas.
Pela avaliação da OMC, conforme a Folha apurou, só a
China ganharia mais do que o
Brasil com a aceitação do pacote Lamy.
A OMC não especifica, no
entanto, os números em que
baseia seus cálculos. O jornal
"Valor Econômico" usou cálculos do setor privado para informar que "o ganho agrícola para
o país com a Rodada Doha seria
de US$ 4,9 bilhões", um incremento de quase 190% nas exportações brasileiras de carne
bovina, de frango e etanol para
as duas maiores potências do
planeta (EUA e União Européia). Convém, no entanto, tomar sempre com cautela todos
os cálculos sobre ganhos futuros em negociações comerciais.
Afinal, ao terminar a anterior
rodada de liberalização (a Uruguai, que acabou em 1994, depois de oito anos), houve cálculos de portentosos lucros para
os países em desenvolvimento,
Brasil inclusive. Aconteceu o
contrário: ganharam muito os
países já ricos, o que é natural.
Se se liberaliza o comércio, ganha mais quem tem mais comércio -e quem mais tem comércio são os países ricos.
Agora, no entanto, o cenário
é diferente: China, Índia e, em
menor medida, Brasil também
se tornaram usinas comerciais,
com potencial para ganhar com
o livre comércio (desde que as
regras sejam equilibradas, o
que não acontece hoje).
Portanto, o Brasil perde, para começar, por deixar de ganhar, fosse qual fosse o ganho.
Perde também politicamente, por ter abandonado parceiros com os quais manteve intensa convivência ao longo dos
sete anos de negociações da
Rodada Doha. O chanceler brasileiro Celso Amorim justificou
a guinada em nome do "interesse nacional". É justo e lógico. Mas era preciso antes combinar com parceiros como,
principalmente, Índia e Argentina.
A mudança de posição do
Brasil inviabiliza o G20, o grupo de países em desenvolvimento criado em 2003 para extrair concessões em agricultura dos países ricos. O G20 foi
sistematicamente mencionado, pelo Itamaraty e até pelo
presidente Luiz Inácio Lula da
Silva, como o instrumento que
levaria, nos sonhos presidenciais, a mudar a "geografia comercial" do planeta.
Não mudou, como se viu,
nem serve mais, como Amorim
deixou publicamente claro em
seguida à aceitação do pacote
Lamy. A morte não declarada
do G20 faz o Brasil perder voz
de comando: o chanceler Amorim cobrou de seus parceiros
no G20 que seguissem o exemplo brasileiro e "assumissem
riscos". Não foi ouvido por Índia, China e Argentina, entre
outros.
A guinada criou ruído também nas relações com a Argentina, apunhalada pelas costas
depois de o Brasil ter jurado
que defenderia até a morte na
OMC o tratamento do Mercosul como união aduaneira.
Significa que os países-membros dessa união adotam, além
de tarifa zero para as trocas comerciais entre eles, a mesma
tarifa de importação de países
não-membros. Ou, posto de
outra forma, o nível de proteção tarifária tem que ser igual
para todos. Em Genebra, no
entanto, o Brasil aceitou uma
proteção inferior à que a Argentina quer, o que automaticamente significa tornar ainda
mais furado o esquema de
união aduaneira.
De novo, pode-se usar o argumento do "interesse nacional", mas, se o Mercosul é prioritário para a diplomacia brasileira, seu principal sócio no
bloco não pode ser abandonado de repente sem gerar ressentimento. Claro que ressentimentos diplomáticos ou comerciais não são permanentes.
Basta ver o presidente venezuelano, Hugo Chávez, rindo,
agora, do "por qué no te callas?" que lhe sapecou o rei da
Espanha. De todo modo, os
problemas com Índia e Argentina só podem entrar na coluna
do prejuízo na medida em que
não houve o ganho esperado
com a guinada que gerou os
problemas.
O Brasil perde ainda porque
o fracasso da Rodada Doha deixa presos apenas com alfinetes
os ganhos presumíveis surgidos na negociação da semana
passada.
Exemplo: a promessa européia de abrir-se ao menos um
pouco para o etanol brasileiro
-um dos cavalos de batalha
principais de Lula- já foi fulminada ontem por dois países,
Irlanda e França, com o detalhe nada trivial de que a França
preside a União Européia até o
fim do ano, com toda a força
que a presidência dá ao país
que a exerce para influir na
agenda do conglomerado.
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