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ALIMENTAÇÃO
Gastronomia zen
A monja Gyoku En lança livro sobre a culinária "shôjin ryôri", praticada nos mosteiros zen-budistas, que prega concentração total, silêncio e organização e evita desperdício no preparo de alimentos
FLÁVIA MANTOVANI
DA REPORTAGEM LOCAL
Quem já entrou numa
cozinha no momento
em que é preparada
uma refeição para
muita gente sabe que tem grande chance de encontrar uma
cena próxima ao caos. Mas não
se o que estiver sendo feito for
algo da culinária "shôjin ryôri".
Não importa se o banquete é
para duas ou 50 pessoas: barulhos tradicionais como o de panelas batendo, gente correndo
ou cozinheiros gritando dão lugar a silêncio e concentração.
É como se o ato de cozinhar
ganhasse ares monásticos. E é
disso que se trata: a "shôjin" é a
culinária dos mosteiros zen-budistas e tema do livro "O Zen
na Cozinha" (ed. Sustentar, 128
págs., R$ 30), recém-lançado
pela monja Gyoku En -nome
de batismo Magda-, 58.
Segundo ela, o silêncio e a
concentração em cada tarefa
podem transformar o ato de cozinhar numa forma de meditação. "Costumamos cozinhar
batendo papo, com a TV ligada,
mas, na culinária "shôjin", deve-se exercitar a plena atenção e
deixar os pensamentos passarem. Podemos meditar no nosso dia-a-dia."
Apesar de vários de seus
princípios estarem em voga
-como a valorização de alimentos orgânicos, da época e
da região e o reaproveitamento
de talos e cascas-, a culinária
"shôjin" é milenar: seus fundamentos foram escritos em 1237
por Mestre Dôgen, autor de
"Shobogenzo" (do japonês, tesouro do olho da verdadeira
lei), tratado sobre a prática nos
mosteiros zen-budistas.
O trecho relativo à culinária
"shôjin", chamado "Tenzô
Kyokun" (instruções ao cozinheiro zen), traz ensinamentos
sobre temas como a renovação
dos menus de acordo com as estações, o cuidado diário com os
objetos e a importância da limpeza e da organização.
Esses dois últimos princípios, aliás, são muito ressaltados. "As cozinhas dos mosteiros são simples, mas muito organizadas, limpas e eficientes.
Cada coisa tem seu lugar.
Quando o "tenzô" [monge cozinheiro] entra, nunca se perde e
tem tranqüilidade para atuar",
conta Gyoku En.
Cenário não tão diferente da
cozinha da sua avó, em Minas
Gerais, que traz suas mais remotas memórias culinárias.
"Era simples, mas limpinha e
organizada. Havia ali tanta
tranqüilidade...", lembra.
Na juventude, o gosto por cozinhar não aflorou logo. "Gostava mesmo era de ler, namorar
e passear." Universitária, passou a cozinhar para as colegas
de apartamento e descobriu culinárias como a macrobiótica, a
japonesa e a indígena.
Com a decisão de tornar a alimentação mais natural, Magda
decidiu aprender a meditar, e
foi assim que chegou ao zen-budismo. Praticante assídua, só decidiu se tornar monja tempos depois. Mesmo antes da ordenação, já cozinhava em mosteiros, nos retiros. "Eles sempre me davam algo para moer:
milho, arroz. Era cansativo e eu
era muito elétrica. Mas precisava treinar a atenção."
Em um mosteiro no Japão,
Gyoku En ficou encantada com
o requinte na apresentação das
refeições. Os vários pratos são
servidos em recipientes individuais. "Eles se preocupam com
o ponto certo, cortam bonitinho, põem uma vagem em cima
da outra, colocam um molhinho. E a cerâmica usada é maravilhosa. "Shôjin" é assim, bonita de ver", exemplifica.
Além da atenção para que a
comida fique al dente, os cuidados incluem usar fogo brando e
temperos sutis. "Cada alimento
deve conservar seu próprio
gosto. Essa história de mascarar sabores é desta civilização."
Prega-se, ainda, a moderação
ao comer: segundo o livro, ao
sair da mesa, o ideal é estar com
20% do estômago vazio.
Apesar de a "shôjin" não utilizar carne nem derivados animais, Gyoku En diz que alguns
mosteiros abrem exceção para
quem teve contato a vida toda
com esses produtos e sente falta. "Gosto do vegetarianismo,
mas não quero fazer uma apologia dele. Cada um sabe o que é
melhor para si."
Além de frutas e verduras, o
cozinheiro zen utiliza ingredientes como soja, brotos e algas marinhas. Não há pão, e o
açúcar e o óleo vegetal entram
em pequena quantidade.
Segundo Gyoku En, inspiração e criatividade conseguem
transformar uma gama limitada de ingredientes em pratos
requintados: opções como o arroz de gengibre, o sushi de cará
e a salada de nabo com caqui
maduro, receitas que estão no
seu livro; ou o chocolate rústico
que ela fez com açúcar mascavo
e bagas de cacau doadas para
um mosteiro; ou a pizza com
massa de milho, molho de tomate da horta e queijo do leite
da vaca criada por monges. "É
uma culinária que nutre o corpo, a alma, o espírito", diz.
A monja é hoje diretora espiritual do Dojo Cazazen - Comunidade Zen Budista de Brasília.
Foi depois de dar cursos de
"shôjin" que decidiu escrever o
livro. Segundo ela, seus princípios podem ser seguidos mesmo por quem não é zen-budista. "Basta querer. De repente, a
a pessoa tem uma cozinha muito bagunçada e quer deixá-la
mais organizada. Ou, se alguém
quiser tentar a atenção plena,
pode começar hoje mesmo."
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