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ELEIÇÕES 2004
Serra detesta demagogia; responde aos apelos que ouve com calma e se despede sem promessas
JOSÉ SERRA
CONTARDO CALLIGARIS
Na sabatina da Folha, Serra chegou com um pequeno atraso.
Sabíamos que acontecera um
imprevisto e, nos bastidores, houve um momento em que chegamos a pensar que o debate não
aconteceria. Enfim, a sabatina começou 15 minutos mais tarde do
que a norma dos dias anteriores.
Quando voltei para casa, poucas
horas depois, encontrei o e-mail
de uma leitora, que acabava de assistir ao debate. Ela esculhambava
o candidato, observando que ele
nem pedira desculpas pelo atraso,
"que parece ter achado supernormal". A seu ver, Serra, com seu silêncio, saíra mal na foto.
Ora, junto com os outros entrevistadores e os organizadores do
debate, eu conhecia as razões do
atraso. Eram do tipo que, se reveladas, tocariam o coração e ganhariam a simpatia imediata de
todos os presentes. Serra não as
mencionou.
Tampouco ele inventou uma
daquelas desculpas que garantem
a cumplicidade de um público
paulistano (uma alusão ao trânsito, por exemplo). Pois bem, a escolha de não dizer nada, que pareceu áspera à leitora que me escreveu, é o efeito de um "parti pris",
que se manteve constante nas
conversas que tive com Serra e na
caminhada em que pude acompanhá-lo: José Serra detesta demagogia.
O que não significa que ele não
queira a simpatia e a aprovação
dos outros (isso, todos queremos). Ao contrário, a recusa da
demagogia, desse ponto de vista, é
a expressão de um pedido especialmente rigoroso. Traduzido
nos termos das relações amorosas, é parecida, por exemplo, com
o pedido de uma parceira que exigiria: goste de mim descabelada,
de manhã cedo, sem maquiagem
e sem plástica.
Lembra? No debate ao redor da
moratória da dívida externa durante o governo Sarney, por
exemplo, Serra admitia a moratória, pois, de fato, o Brasil não tinha
como honrar os pagamentos previstos. Mas ele se opunha à transformação desse fracasso financeiro num grito heróico de independência. Nada de dourar a pílula
para acariciar o ufanismo na direção do pelo. Mais recentemente,
na ocasião do aniversário do golpe de 64, Serra, com 14 anos de
exílio nas costas, poderia participar da festa tocando na banda da
vitória. Preferiu criticar sua própria atuação na época e apontar,
no comportamento de Jango e
das esquerdas, fatores que precipitaram o golpe.
A recusa obstinada da demagogia pode cortar os entusiasmos e
ter um custo político. Mas seu
custo maior acaba sendo subjetivo. Explico.
Sábado passado, Serra aceitou
me receber. Salvo pela sessão da
sabatina, dias antes, foi nosso primeiro encontro e conversamos
noite adentro. Falando das campanhas, ele disse que o mais difícil
não são as horas de gravação, as
discussões estratégicas, os comícios, as carreatas, as caminhadas,
nem mesmo os ataques.
A tarefa mais árdua é prestar
ouvido à massa de queixas, lamentações e pedidos, vozes da infinita variedade da infelicidade
humana, das quais talvez qualquer político ou candidato seja o
destinatário.
Em cima da mesa que estava entre nós, havia um apanhado de
cartas e bilhetes que os eleitores tinham depositado na mão de Serra naquele dia. Alguns pedidos
permitiam uma resposta adequada e circunscrita: dificuldades em
obter consultas médicas ou agendar operações, histórias de IPTU
excessivo, de lentidões administrativas e por aí vai.
No Ministério da Saúde de Serra, aliás, um assessor era encarregado de resolver as dificuldades
dos cidadãos que escreviam. Claro, era uma gota de água. As soluções encontradas não operavam
nem prometiam as mudanças coletivas desejadas, no entanto eram
um jeito de não esquecer que a
política não é nada se não responde às necessidades das vidas concretas. Seja como for, a esses pedidos era fácil responder com uma
ação.
Mas, em sua imensa maioria, as
cartas e os bilhetes na minha frente eram folhas de caderno em que
uma escrita hesitante e corajosa
expressava dores cuja solução não
estava ao alcance de uma ação: vidas quebradas por uma mistura
de falta de emprego e de função
social, dramas familiares, fugas,
lutos.
As missivas não pediam nada e
pediam tudo. Pareciam-se com as
invocações que, em certas igrejas
de minha infância, os fieis depositavam ao lado da estátua do santo
ou nas dobras de seu manto, para
que ele lesse e tomasse providências. Algumas nem detalhavam
males e sofrimentos; confiavam
na onisciência do destinatário, diziam apenas: "Serra, nos ajude".
Ora, talvez a demagogia política
tenha sido inventada para isto:
para que candidatos e governantes possam agüentar mais facilmente o peso da demanda que recebem, calá-la enfiando balinhas
de ilusão na goela de quem se
queixa e, naturalmente, em seus
próprios ouvidos.
Aparentemente, Serra não sabe
se dar esse luxo. E, sem o recurso
da demagogia, o peso dos pedidos
é violento, produz a sensação de
uma responsabilidade constante
por uma tarefa impossível.
Talvez por isso mesmo Serra
pareça sempre procurar, na fala
de quem o interpela, algum pedido concreto, algo que possa receber uma resposta efetiva.
Segunda-feira, no bairro Jova
Rural, Serra visitou a casa de uma
jovem senhora, Andréa Rodrigues. Escutou uma dura história
de doenças e infortúnios. E disse
para Andréa, que mostrava um
sorriso desdentado: "Precisamos
arrumar esses dentes". Brutal?
Inoportuno? Acho que, para Serra, era o jeito de encontrar algo
que pudesse ser feito mesmo, de
não sucumbir ao marasmo do impossível. Não temos as chaves do
paraíso, mas algo podemos mudar, uma coisa pequena comparada com o resto, mas uma coisa: os
dentes.
Às vezes, esse anseio de fazer assusta. Numa caminhada no Tremembé/Jaçanã (conheci enfim o
lugar para onde vai o trem das 11),
um homem pára sua bicicleta de
corrida e, do fio da calçada, grita:
"Serra, vamos fazer pistas para bicicletas!".
Imagino que ele esperasse um
gesto ou um sorriso de aprovação. Mas Serra foi até ele: "Vamos
fazer, sim. É uma questão importante, que é preciso estudar com
cuidado". Estupefação do homem; aparentemente o apego ao
que pode ser feito é mais inesperado do que a vaga referência ao
sol de amanhã.
E quando não há nada que possa ser feito? Na caminhada no
Tremembé, Serra ouviu muitas
queixas de tudo e nada, mão no
ombro, com calma, como se o dia
não fosse acabar. E se despediu
sem promessas. Mesmo assim, o
alívio de quem falara com ele era
óbvio: era o alívio de ter sido escutado ou escutada. O fardo ficava com Serra.
Quase no fim da caminhada,
uma mulher protestou. Disse que
Serra teria seu voto, que não se
preocupasse, mas que essas caminhadas atrapalhavam o trânsito
na hora do rush. Fiquei a fim de
lhe responder que os verdadeiros
beneficiários das caminhadas às
quais eu assisti éramos nós, os cidadãos.
Nelas, o que importava não
eram tanto os votos ganhos ou
não pelo candidato. O que importava era o encontro do candidato
com o murmúrio surdo da demanda humana.
Pois, quando esse encontro não
acontece ou quando a demanda é
calada à força de ilusões, é difícil
que um candidato adquira a estatura moral que se espera de quem
governa.
O psicanalista Contardo Calligaris é
colunista da Folha e escreve às quintas-feiras na contracapa de Ilustrada
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