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O ALVO
Único país a sofrer até agora o efeito direto da chamada
guerra ao terror, o Afeganistão, livre do regime do Taleban, voltou a ter
seu cotidiano político ditado pelos ""senhores da guerra". Em lugar de
democracia, quem manda no Afeganistão ainda são os chefes locais, algo que havia sido reprimido pela paz sangrenta do extremismo islâmico
Novo Afeganistão tem velhas crises
IGOR GIELOW
COORDENADOR DA AGÊNCIA FOLHA
O Afeganistão, único país a sofrer até agora o efeito direto da
chamada "guerra ao terror", chega ao primeiro aniversário do 11
de setembro vivendo contradições decorrentes da ação militar
retaliatória dos Estados Unidos.
Se, por um lado, o país está livre
do regime do Taleban, um dos
mais cruéis do fim do século 20, é
igualmente verdade que a miséria
predomina e a lei voltou a ser ditada pelos "senhores da guerra".
Na oportunidade mais recente
que tiveram de governar, em
1992, esses líderes locais que comandam seus feudos à força levaram o país à guerra civil que abriu
caminho para o Taleban.
Na versão vendida por boa parte da mídia americana, a guerra
iniciada em 7 de outubro e encerrada dois meses depois com a derrota do Taleban estabeleceu um
embrião de democracia liberal.
Engano. Como os atentados da
semana passada mostraram,
quem manda no Afeganistão ainda são os chefes locais, algo que
havia sido reprimido pela paz imposta a sangue pelos anos do Taleban (1996-2001).
O problema está na estrutura
política. O governo é chefiado pelo líder pashtu Hamid Karzai, que
deverá convocar eleições em 2004
e foi ratificado presidente pela Loya Jirga -assembléia que reuniu
líderes tribais em junho.
Os pashtus são a maioria étnica
do país, cerca de 40% dos 27 milhões de afegãos, e desconfiam do
grande poder dos tadjiques (25%
da população) na gestão Karzai.
Essa disputa é apimentada pela
influência dos "senhores da guerra", que dão as cartas fora de Cabul e Candahar. Lá, quem manda
é gente como o uzbeque étnico
Abdul Rashid Dostum, acusado
de diversos crimes de guerra no
seu bastião de Mazar-e-Sharif.
Karzai teve de compor com eles
para garantir sua presidência.
Enquanto isso, já caiu assassinado o vice-presidente Hadji Abdul
Qaddir. Karzai, por precaução, só
usa seguranças americanos. Como ficou claro nas declarações
após os atentados recentes, quando Karzai quase morreu, a rede Al
Qaeda e o que sobrou do Taleban
são os suspeitos usuais.
De fato, é incerto o paradeiro de
boa parte dos 50 mil combatentes
liderados pelo mulá Mohammad
Omar e que protegiam Osama bin
Laden. Por avaliações informais,
entre 5.000 e 10 mil podem ter
morrido. A maioria segue solta.
Por fim, há os "senhores da
guerra" que não fizeram acordo
com Karzai, como Gulbuddin
Hekmatiar e Padshah Zadran.
Do ponto de vista humanitário,
a situação é tão ou mais catastrófica que antes. A guerra em si matou, para os otimistas, centenas de
civis. Os mais realistas, como pesquisa do cientista político Marc
Herold para o jornal inglês "The
Guardian", falam em até 3.500.
Mas o grande problema é a falta
de infra-estrutura e o fluxo de refugiados. Antes da guerra, havia
cerca de 5 milhões de refugiados
fora do Afeganistão. De dezembro para cá, 1,9 milhão voltaram
-o maior deslocamento em 30
anos, segundo a ONU.
Cabul sozinha recebeu cerca de
500 mil pessoas, quase dobrando
sua população, e não há água corrente e luz elétrica o tempo todo.
A economia segue estagnada,
porque só um terço do US$ 1,8 bilhão prometidos de ajuda para este ano chegaram. Karzai espera
US$ 4,5 bilhões em cinco anos.
As decorrências são várias. A
maior é o retorno do tráfico de
ópio e heroína como fonte de renda. Anulado no último ano do Taleban, o tráfico vai produzir neste
ano 2.952 toneladas de drogas segundo a ONU, recorde mundial.
Mas nem todas são más notícias. A melhor é a revogação das
regras feitas a partir da leitura rígida e distorcida de preceitos islâmicos feita pelo Taleban. Já na
primeira semana sem o governo
fundamentalista, foi reaberta a
TV em Cabul. Homens apararam
a barba obrigatória.
A música e o cinema vivem um
discreto renascimento, abalado
pela proibição de material cultural indiano -visto como "degradante" pela gestão Karzai. Ao menos, ninguém será fuzilado por
contrabandear CDs, como antes.
A educação, tolhida pelo Taleban, está sendo reestruturada e foi
reaberta a meninas. Há ano escolar, embora a falta de pagamento
a professores já tenha suspendido
as aulas para 40 mil crianças.
Já as mulheres, símbolo máximo da opressão o Taleban por terem perdido todos os direitos civis, lutam por sua reinserção. Se o
uso da burga, véu tradicional que
cobre todo o corpo, ainda está em
voga, mulheres integram o governo e muitas voltaram a trabalhar
como médicas, nicho tradicional
do qual haviam sido banidas.
Outro ganho institucional é o
novo Exército, que terá 80 mil homens e poderá garantir uma inédita força ao governo central.
Resta agora saber até onde vai o
envolvimento dos EUA. A turbulenta paz atual só existe porque há
a presença de quase 8.000 soldados americanos lá, além dos 5.000
da força multinacional de Cabul.
O comandante dos EUA na região, general Tommy Franks, disse que a força vai "ficar muito
tempo", apesar das baixas -cerca de 60 entre os estrangeiros.
Se, por um lado, acumulam-se
evidências de que a caçada a Bin
Laden esteja sendo infrutífera,
por outro, ao ser tutor de Cabul,
Washington finca o pé numa região estratégica. De lá, os EUA podem abrir acesso às reservas energéticas da Ásia Central, hoje sob o
guarda-chuva russo e os olhos gulosos da China.
A história não é favorável aos
estrangeiros no Afeganistão, de
Alexandre, o Grande aos soviéticos que o ocuparam entre 1979 e
1989, passando por ingleses e persas. Mas fatores externos determinam as derrotas, e hoje os EUA
têm hegemonia suficiente para
manter uma "paz quente". A pergunta é: até quando?
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