São Paulo, domingo, 08 de setembro de 2002

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O ALVO

Único país a sofrer até agora o efeito direto da chamada guerra ao terror, o Afeganistão, livre do regime do Taleban, voltou a ter seu cotidiano político ditado pelos ""senhores da guerra". Em lugar de democracia, quem manda no Afeganistão ainda são os chefes locais, algo que havia sido reprimido pela paz sangrenta do extremismo islâmico

Novo Afeganistão tem velhas crises

IGOR GIELOW
COORDENADOR DA AGÊNCIA FOLHA

O Afeganistão, único país a sofrer até agora o efeito direto da chamada "guerra ao terror", chega ao primeiro aniversário do 11 de setembro vivendo contradições decorrentes da ação militar retaliatória dos Estados Unidos.
Se, por um lado, o país está livre do regime do Taleban, um dos mais cruéis do fim do século 20, é igualmente verdade que a miséria predomina e a lei voltou a ser ditada pelos "senhores da guerra".
Na oportunidade mais recente que tiveram de governar, em 1992, esses líderes locais que comandam seus feudos à força levaram o país à guerra civil que abriu caminho para o Taleban.
Na versão vendida por boa parte da mídia americana, a guerra iniciada em 7 de outubro e encerrada dois meses depois com a derrota do Taleban estabeleceu um embrião de democracia liberal.
Engano. Como os atentados da semana passada mostraram, quem manda no Afeganistão ainda são os chefes locais, algo que havia sido reprimido pela paz imposta a sangue pelos anos do Taleban (1996-2001).
O problema está na estrutura política. O governo é chefiado pelo líder pashtu Hamid Karzai, que deverá convocar eleições em 2004 e foi ratificado presidente pela Loya Jirga -assembléia que reuniu líderes tribais em junho.
Os pashtus são a maioria étnica do país, cerca de 40% dos 27 milhões de afegãos, e desconfiam do grande poder dos tadjiques (25% da população) na gestão Karzai.
Essa disputa é apimentada pela influência dos "senhores da guerra", que dão as cartas fora de Cabul e Candahar. Lá, quem manda é gente como o uzbeque étnico Abdul Rashid Dostum, acusado de diversos crimes de guerra no seu bastião de Mazar-e-Sharif. Karzai teve de compor com eles para garantir sua presidência.
Enquanto isso, já caiu assassinado o vice-presidente Hadji Abdul Qaddir. Karzai, por precaução, só usa seguranças americanos. Como ficou claro nas declarações após os atentados recentes, quando Karzai quase morreu, a rede Al Qaeda e o que sobrou do Taleban são os suspeitos usuais.
De fato, é incerto o paradeiro de boa parte dos 50 mil combatentes liderados pelo mulá Mohammad Omar e que protegiam Osama bin Laden. Por avaliações informais, entre 5.000 e 10 mil podem ter morrido. A maioria segue solta.
Por fim, há os "senhores da guerra" que não fizeram acordo com Karzai, como Gulbuddin Hekmatiar e Padshah Zadran.
Do ponto de vista humanitário, a situação é tão ou mais catastrófica que antes. A guerra em si matou, para os otimistas, centenas de civis. Os mais realistas, como pesquisa do cientista político Marc Herold para o jornal inglês "The Guardian", falam em até 3.500.
Mas o grande problema é a falta de infra-estrutura e o fluxo de refugiados. Antes da guerra, havia cerca de 5 milhões de refugiados fora do Afeganistão. De dezembro para cá, 1,9 milhão voltaram -o maior deslocamento em 30 anos, segundo a ONU.
Cabul sozinha recebeu cerca de 500 mil pessoas, quase dobrando sua população, e não há água corrente e luz elétrica o tempo todo.
A economia segue estagnada, porque só um terço do US$ 1,8 bilhão prometidos de ajuda para este ano chegaram. Karzai espera US$ 4,5 bilhões em cinco anos.
As decorrências são várias. A maior é o retorno do tráfico de ópio e heroína como fonte de renda. Anulado no último ano do Taleban, o tráfico vai produzir neste ano 2.952 toneladas de drogas segundo a ONU, recorde mundial.
Mas nem todas são más notícias. A melhor é a revogação das regras feitas a partir da leitura rígida e distorcida de preceitos islâmicos feita pelo Taleban. Já na primeira semana sem o governo fundamentalista, foi reaberta a TV em Cabul. Homens apararam a barba obrigatória.
A música e o cinema vivem um discreto renascimento, abalado pela proibição de material cultural indiano -visto como "degradante" pela gestão Karzai. Ao menos, ninguém será fuzilado por contrabandear CDs, como antes.
A educação, tolhida pelo Taleban, está sendo reestruturada e foi reaberta a meninas. Há ano escolar, embora a falta de pagamento a professores já tenha suspendido as aulas para 40 mil crianças.
Já as mulheres, símbolo máximo da opressão o Taleban por terem perdido todos os direitos civis, lutam por sua reinserção. Se o uso da burga, véu tradicional que cobre todo o corpo, ainda está em voga, mulheres integram o governo e muitas voltaram a trabalhar como médicas, nicho tradicional do qual haviam sido banidas.
Outro ganho institucional é o novo Exército, que terá 80 mil homens e poderá garantir uma inédita força ao governo central.
Resta agora saber até onde vai o envolvimento dos EUA. A turbulenta paz atual só existe porque há a presença de quase 8.000 soldados americanos lá, além dos 5.000 da força multinacional de Cabul.
O comandante dos EUA na região, general Tommy Franks, disse que a força vai "ficar muito tempo", apesar das baixas -cerca de 60 entre os estrangeiros.
Se, por um lado, acumulam-se evidências de que a caçada a Bin Laden esteja sendo infrutífera, por outro, ao ser tutor de Cabul, Washington finca o pé numa região estratégica. De lá, os EUA podem abrir acesso às reservas energéticas da Ásia Central, hoje sob o guarda-chuva russo e os olhos gulosos da China.
A história não é favorável aos estrangeiros no Afeganistão, de Alexandre, o Grande aos soviéticos que o ocuparam entre 1979 e 1989, passando por ingleses e persas. Mas fatores externos determinam as derrotas, e hoje os EUA têm hegemonia suficiente para manter uma "paz quente". A pergunta é: até quando?


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