São Paulo, quarta-feira, 26 de junho de 2002

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MARÇAL AQUINO

Dia de decisão

Na hora do gol, com o foguetório, os caras começaram a dar tiros para o alto. Já havia acontecido no jogo anterior da seleção.
A mulher sentou-se na cama, cutucou o marido. Everaldo não estava dormindo, fingia apenas. Tinha ouvido os disparos.
"Você precisa falar com eles", a mulher disse.
Ele odiava futebol, mas vinha acompanhando a Copa na marra, em especial as partidas do Brasil. Morava com a segunda mulher, ao lado de uma favela na zona sul, e "os caras", como Everaldo se referia aos vizinhos, comemoravam os gols dando tiros. Munição e gente da pesada.
"Vai lá, Everaldo, faz alguma coisa."
Ele levantou-se lentamente, vestiu a calça e a camisa, pegou os sapatos. O corpo inteiro doía. Fazia semanas que não dormia direito, desde o começo da Copa. Estava a ponto de explodir.
A mulher acendeu o abajur, Everaldo sentou-se na beira da cama para calçar os sapatos. Consultou o relógio sobre o criado-mudo: quase quatro e meia da manhã.
Ouviu novos estrondos, mas não conseguiu distinguir se eram morteiros ou tiros. A mulher cobria os ouvidos com as mãos.
O que ela esperava que ele fizesse?, Everaldo se perguntou enquanto saía do quarto. Não era nenhum herói. Na verdade, não passava de um motorista que ralava 18 horas por dia para juntar a diária do táxi de frota. Nem assim estava conseguindo pagar a pensão à ex-mulher e manter a casa nova.
E a mulher pressionando para que se mudassem dali.
"Se for pra morar perto da ralé, eu vou embora", ela repetia todos os dias. Um inferno.
Everaldo atravessou a rua de terra na direção da birosca. Cinco sujeitos mal-encarados, sentados em cadeiras de metal, acompanhavam o jogo do Brasil numa televisão minúscula. Sobre a mesa, além de garrafas de cerveja, as armas. Tudo grosso calibre.
Os cinco acompanharam com atenção quando ele entrou na birosca. Everaldo cumprimentou-os com um aceno de cabeça, nenhum retribuiu. Ele tirou as mãos do bolso, as caras continuaram feias. Everaldo olhou para o velho atrás do balcão improvisado e também improvisou:
"Me vê uma cerveja."
Para seu alívio, os homens voltaram a se concentrar na TV. A imagem estava tão ruim que exigia, além de atenção, uma boa dose de imaginação de quem assistia ao jogo. Everaldo bebeu um gole de cerveja e percebeu que suava nas axilas. Não tinha a menor idéia do que fazer.
A Copa, na verdade, era apenas uma das coisas que lhe tiravam o sono. Sua ex-mulher dera um ultimato: se ele não voltasse para ela e para o filho pequeno, iria botar as pensões atrasadas no pau. Everaldo sabia que ela era capaz de cumprir a ameaça e que ele acabaria em cana.
Naquele momento, Ronaldinho encaçapou uma bola no ângulo dos ingleses, e os cinco caras pularam para o meio da rua e descarregaram suas armas.
Quando viu que eles recarregavam a munição, Everaldo tomou uma decisão.
Pagou a cerveja, saiu da birosca e se dirigiu apressado para casa. Estava entrando quando ouviu a nova fuzilaria.
Ele abriu o armário da sala, pegou seus documentos e saiu de casa sem se despedir. Boa parte de suas roupas ainda estava na casa da ex, ele foi pensando a caminho do ponto de ônibus. Estava com o saco cheio da vida que andava levando. A outra que ficasse com a casa, com os vizinhos, com os tiros, com tudo.
Mas ela não ficou. Minutos antes, a mulher espiara pela janela e vira Everaldo tomando cerveja numa boa com os caras. Achou que aquilo era um desaforo muito grande. Então havia juntado suas coisas e se mandado de casa antes dele.


Marçal Aquino, 44, é jornalista, escritor e roteirista dos longas "O Invasor", "Ação Entre Amigos" e "Os Matadores"



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