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MARÇAL AQUINO
Dia de decisão
Na hora do gol, com o foguetório, os caras começaram a dar tiros para o
alto. Já havia acontecido no jogo
anterior da seleção.
A mulher sentou-se na cama,
cutucou o marido. Everaldo não
estava dormindo, fingia apenas.
Tinha ouvido os disparos.
"Você precisa falar com eles", a
mulher disse.
Ele odiava futebol, mas vinha
acompanhando a Copa na marra, em especial as partidas do
Brasil. Morava com a segunda
mulher, ao lado de uma favela na
zona sul, e "os caras", como Everaldo se referia aos vizinhos, comemoravam os gols dando tiros.
Munição e gente da pesada.
"Vai lá, Everaldo, faz alguma
coisa."
Ele levantou-se lentamente,
vestiu a calça e a camisa, pegou
os sapatos. O corpo inteiro doía.
Fazia semanas que não dormia
direito, desde o começo da Copa.
Estava a ponto de explodir.
A mulher acendeu o abajur,
Everaldo sentou-se na beira da
cama para calçar os sapatos.
Consultou o relógio sobre o criado-mudo: quase quatro e meia
da manhã.
Ouviu novos estrondos, mas
não conseguiu distinguir se eram
morteiros ou tiros. A mulher cobria os ouvidos com as mãos.
O que ela esperava que ele fizesse?, Everaldo se perguntou enquanto saía do quarto. Não era
nenhum herói. Na verdade, não
passava de um motorista que ralava 18 horas por dia para juntar
a diária do táxi de frota. Nem assim estava conseguindo pagar a
pensão à ex-mulher e manter a
casa nova.
E a mulher pressionando para
que se mudassem dali.
"Se for pra morar perto da ralé,
eu vou embora", ela repetia todos
os dias. Um inferno.
Everaldo atravessou a rua de
terra na direção da birosca. Cinco sujeitos mal-encarados, sentados em cadeiras de metal, acompanhavam o jogo do Brasil numa
televisão minúscula. Sobre a mesa, além de garrafas de cerveja, as
armas. Tudo grosso calibre.
Os cinco acompanharam com
atenção quando ele entrou na birosca. Everaldo cumprimentou-os com um aceno de cabeça, nenhum retribuiu. Ele tirou as
mãos do bolso, as caras continuaram feias. Everaldo olhou para o
velho atrás do balcão improvisado e também improvisou:
"Me vê uma cerveja."
Para seu alívio, os homens voltaram a se concentrar na TV. A
imagem estava tão ruim que exigia, além de atenção, uma boa
dose de imaginação de quem assistia ao jogo. Everaldo bebeu um
gole de cerveja e percebeu que
suava nas axilas. Não tinha a
menor idéia do que fazer.
A Copa, na verdade, era apenas
uma das coisas que lhe tiravam o
sono. Sua ex-mulher dera um ultimato: se ele não voltasse para
ela e para o filho pequeno, iria
botar as pensões atrasadas no
pau. Everaldo sabia que ela era
capaz de cumprir a ameaça e que
ele acabaria em cana.
Naquele momento, Ronaldinho
encaçapou uma bola no ângulo
dos ingleses, e os cinco caras pularam para o meio da rua e descarregaram suas armas.
Quando viu que eles recarregavam a munição, Everaldo tomou
uma decisão.
Pagou a cerveja, saiu da birosca
e se dirigiu apressado para casa.
Estava entrando quando ouviu a
nova fuzilaria.
Ele abriu o armário da sala, pegou seus documentos e saiu de
casa sem se despedir. Boa parte
de suas roupas ainda estava na
casa da ex, ele foi pensando a caminho do ponto de ônibus. Estava com o saco cheio da vida que
andava levando. A outra que ficasse com a casa, com os vizinhos,
com os tiros, com tudo.
Mas ela não ficou. Minutos antes, a mulher espiara pela janela e
vira Everaldo tomando cerveja
numa boa com os caras. Achou
que aquilo era um desaforo muito grande. Então havia juntado
suas coisas e se mandado de casa
antes dele.
Marçal Aquino, 44, é jornalista, escritor
e roteirista dos longas "O Invasor",
"Ação Entre Amigos" e "Os Matadores"
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