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Jogador batia em meninos maiores e ajudava treinador a levar basquete à periferia de sua cidade
Nenê evoluiu no jipe e "na mão"
DO ENVIADO ESPECIAL A SÃO CARLOS
Hoje na NBA, Nenê teve um início conturbado no basquete.
De personalidade forte e agressiva, o garoto de dez anos trouxe
problemas para seu professor, Nivaldo Meneghelli, nos primeiros
três anos de treinamentos.
"Ele sempre foi briguento, sempre queria pegar o jogador que
não passava a bola para ele. "Eu
quero a bola, quero a bola", ele gritava. E xingava todo mundo",
conta Meneghelli. "Isso ele com
11, 12 anos, e o outro com 16, 17."
Meneghelli diz ter sido difícil ter
de "segurar as pontas" e continuar a bancar o atleta. "Comecei a
passar dificuldades com o moleque porque, além de não pagar
nada, ainda batia nos outros."
O "segurar as pontas" ele exemplifica citando um dos muitos telefonemas pedindo a expulsão de
Nenê, visto como uma ameaça física aos colegas de aula.
- Quem é o Nenê, aquele moreno? Ele tá batendo no meu filho
na saída [da escola], dizia um pai,
indignado.
- Quem é o seu filho?, questionou Meneghelli.
- O João.
- Mas o João tem 17 anos, o
Nenê tem 12!
- Então! Ele tá batendo no
meu filho...
"Até os 13 anos, o Nenê foi um
menino muito rebelde. Brigava,
corria atrás da molecada, jogava a
bola em todo mundo, ia em cima
do professor. Punha o pé na quadra era isso. Perdi vários alunos
por causa dele", diz Meneghelli.
O técnico não sabe exatamente
dizer o porquê. "A família dele
sempre foi tranquila. Acho que é
mais o lugar onde ele morou, a
rua, o campinho de futebol."
Entretanto, a partir dos 14 anos,
Nenê, sempre orientado por Meneghelli, "transformou" sua
agressividade. Não mais a extravasava fisicamente nos companheiros, e sim verbalmente.
"Com as competições, começou
a se soltar mais, queria sempre jogar, estar em quadra, ganhar. Passou a ser exigente com os colegas
de time, a pegar no pé deles, inclusive dos mais velhos."
"Hoje ele está na NBA por essa
personalidade. Na quadra, não
quer saber se quem está do outro
lado é o Oscar [Schmidt, o maior
cestinha do basquete brasileiro],
se é o Michael Jordan. Para ele, é
só mais um rival, e ele vai para cima mesmo", acredita Meneghelli.
Compromisso
O treinador passou a centrar o
jogo do time de São Carlos em cima de Nenê nos campeonatos das
ligas regionais. Atuava até nas categorias acima de sua idade, jogando ao lado de, ou enfrentando,
meninos mais experientes.
Com sua altura e temperamento, isso não era problema. Frequentemente, figurava como o
destaque da equipe.
Os campeonatos seguiam, um
após o outro, Nenê em todos eles.
E um dia Meneghelli percebeu o
quanto seu pupilo dava valor ao
basquete e aos ensinamentos que
o tutor lhe prestava. Foi em uma
decisão de torneio da categoria
infanto-juvenil (até 16 anos; Nenê
ainda tinha 14, era infantil), contra um time de Ribeirão Preto.
"Perdemos o jogo por um ponto, ele me abraçou, pediu desculpas, disse que fez o que pôde e
emendou: "É que minha avó morreu, está sendo enterrada, e eu estou aqui jogando. Porque tenho
um compromisso com você"."
"Aquilo me comoveu."
O compromisso era mesmo para valer. Nenê ficou aos cuidados
de Meneghelli de 1992 a 1999 e o
ajudou a superar a época das "vacas magras". Era 1995. A "febre
Michael Jordan" estava na entressafra -o jogador curtia sua primeira aposentadoria, tentava a
sorte no beisebol-, e o número
de alunos na escola do treinador
caiu para 30, 35 no máximo.
Com pouco dinheiro -teve
que deixar o local, alugado, onde
dava suas aulas e se empregar em
um clube-, Meneghelli foi à prefeitura e captou verba para um
projeto com crianças carentes, o
qual batizou de "jeepball" e foi feito na esteira de uma conversa
com os técnicos Jorge Guerra, o
Guerrinha, e Carlos Alberto Rodrigues, o Carlão, que lançaram a
idéia em Franca (SP) e a apresentaram em clínica em São Carlos.
"Eles vieram com um jipe importado com uma tabela na traseira. Montamos numa praça, foi
uma loucura", diz Meneghelli.
"Falei: terei um negócio desses."
Dito e feito: conseguiu comprar
um jipe de segunda mão, adaptou
a cesta na parte posterior e foi a
campo, à periferia, três vezes por
semana, levando Nenê a tiracolo.
"Mais para frente consegui um
outro jipe, um Toyota, e fazia torneios de street, três contra três,
duplas, arremessos. O Nenê me
acompanhava e ajudava a organizar. Sempre ao meu lado, comigo.
E a molecada rachava."
O "jeepball" durou até 2000,
quando o prefeito Newton Lima
Neto (PT) assumiu a gestão municipal e encerrou a empreitada.
Ricardo Moralles, assessor técnico da Secretaria de Esportes e
Lazer de São Carlos, explicou o
motivo: Meneghelli perdeu o
"cargo de confiança" que tinha na
prefeitura. Segundo Moralles, outros projetos com crianças, como
o "Campeões do Futuro", estão
em andamento no município.
Pé na estrada
Sem o "jeepball", Meneghelli
centrou suas atenções em sua escola de basquete, em um novo terreno alugado. E viu Nenê enfim
deixar sua cidade natal, com destino a Barueri (Grande SP), onde
o Vasco do Rio fizera parceria
com a prefeitura para a disputa do
Paulista-99 e do Brasileiro-2000.
Acabou pouco utilizado pelo
treinador porto-riquenho Flor
Melendez, que assumiu o time em
substituição a Carlão (um dos
idealizadores do "jeepball").
"Lá, ele sofreu. Me ligava chorando. Não entendia o [portunhol] que ele [Melendez] falava.
Pedi que tivesse muita paciência",
afirma Meneghelli.
O investimento do Vasco na filial, contudo, acabou no mesmo
ano, e Nenê foi absorvido pela
matriz. Lá, estourou. Disputou
um bom Campeonato Nacional
em 2001 (médias de 7,9 pontos e
5,9 rebotes em 20 minutos por jogo) e teve chance na seleção brasileira de Hélio Rubens, seu treinador também no clube carioca.
Para Meneghelli, a chegada ao
basquete do Rio foi fundamental
na evolução do jogo de Nenê. "Lá,
ele pegou seu primeiro sparring, o
Vargas [pivô dominicano], que tinha uma baita envergadura."
No ano passado, Nenê também
chamou, pela primeira vez, a
atenção de olheiros estrangeiros,
incluindo a do americano Michael Coyne, hoje seu agente na
NBA, que soube do atleta após
sua performance nos Goodwill
Games-2001, na Austrália.
Nas semifinais da competição,
diante dos EUA, Nenê marcou oito pontos, apanhou sete rebotes e
deu cinco "tocos" nos 18 minutos
que esteve em quadra. O Brasil levou a partida para a prorrogação,
perdeu e voltou com o bronze.
Foi o que resultou no contato de
Coyne com o canadense José Santos, que viabilizou a ida do atleta
aos EUA em março deste ano.
Desde então, Meneghelli tem falado pouco com Nenê, algumas
vezes por telefone, a maioria delas
por e-mail. "Nos falamos a cada
15, 20 dias. Ele é muito grato a
mim, sempre fala: "Estou aqui por
sua causa, você que me ensinou"."
Questionado se não espera algum tipo de recompensa de seu
ex-atleta, que hoje recebe em dólar, ele não demonstra grande entusiasmo. "Ele tem comentado
comigo que eu vou ter uma surpresa. Não fala o que é, só me pede para ter calma. Só falo que continuo trabalhando honestamente,
não posso ficar na expectativa de
que ele vai me ajudar."
E deixa transparecer, após mais
uma dose de melancolia, uma
ponta de esperança e um desejo.
"Aqui tenho que ser técnico, dirigente, pai, psicólogo. Falta estrutura, há um acúmulo de atividades. Até acredito que ele irá fazer alguma coisa. Não me dar dinheiro, mas montar uma escolinha, formar alguns núcleos. Se
vier, vai vir do coração dele, não
posso pedir. Aguardo a surpresa
trabalhando, dando aulas, garimpando meninos... Gostaria de descobrir mais Nenês."
(LUÍS CURRO)
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