|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
TURISTA OCIDENTAL
Terra de samurais vê duelo individual para fazer ou mudar trajetórias
A guerra de cada um
MÁRIO MAGALHÃES
ENVIADO ESPECIAL A YOKOHAMA
Na terra dos antigos samurais, a
véspera da batalha suprema de todas as batalhas do futebol, a final
de uma Copa do Mundo, foi sendo dominada pouco a pouco ontem pelo prelúdio da guerra.
No começo da tarde, na saída do
hotel rumo ao estádio, nada indicava que seria assim. Uma recepcionista ensinou como ir de trem
para o ""Yokohama Stadium", como queria o visitante. Era embarcar na estação Yokohama e descer
na Kannai. Barbada.
Por desencargo de consciência,
uma consulta no balcão de informações da estação revelou: a indicação ao estrangeiro havia sido
para o estádio de beisebol, e não
para o ""International Stadium
Yokohama", o de futebol.
Como se pudesse existir outra
coisa, neste fim de semana e neste
lugar, que não futebol. À noite, a
estação estaria tomada por barracas vendendo produtos futebolísticos, pela exposição de jornais
com a cobertura dos jogos e por
dezenas de pessoas vestindo as
camisas das seleções. O espírito
da Copa, enfim.
No caminho certo para o estádio, na quarta parada se desce em
Shin-Yokohama para ir a pé.
No portão, dois camelôs californianos vendem camisas piratas
da seleção brasileira por R$ 94,
menos da metade do preço das legítimas.
O mineiro de Uberlândia Paulo
José Alves, 60, está de volta do estádio. Irritado, reclama da proibição para os torcedores assistirem
ao treino do Brasil que iniciará em
uma hora. Confia no penta. ""Estamos quatro anos atrasados. O
mundo ainda vai saber que doparam o Ronaldo em 98."
Mais adiante, na caminhada de
pouco menos de 1 km até o estádio, no café Oriental Table se ouve
""Você e Eu", de Carlos Lyra e Vinícius de Moraes, aparentemente
cantada pelo primeiro.
Saindo do café, um menino japonês passa dormindo no carrinho. Está com uma tatuagem da
bandeira do Brasil na bochecha
direita. Os pais querem acordá-lo
para o retrato. Não é preciso.
A frente do estádio é enfeitada
com arranjos florais formando a
expressão World Cup 2002. As
flores amarelas contrastam com a
grama verde. Sentados, três amigos alemães lamentam a barração. Queriam ver o treino da Alemanha, depois do brasileiro.
Dietmar, 27, Reinhard, 32, e
Ralf, 35 -só dizem um nome-
contam a mesma história: nunca
esperaram sua seleção na final e,
se ela perder, já vai estar no lucro
com o vice. O auge do time será
em 2006, esperam.
No treino, um repórter indiano
exibe todo o seu distanciamento
crítico brechtiano: veste uma camisa da seleção brasileira. Como
usa uma cabeleira flagrantemente
artificial, colegas brasileiros o
apelidaram de Peruquinha.
Poucos aqui dizem ter percebido o terremoto da madrugada
-mesmo quem estava acordado
não sentiu nem cosquinha.
Como previsto, o treinamento é
para conhecer o gramado, um
tanto pesado devido à chuva. A
bola levanta água ao rolar.
Só uma parte mais séria: no fim,
como no dia anterior, o técnico
Luiz Felipe Scolari ensaia faltas
com quatro jogadores: Rivaldo,
Ronaldo, Roberto Carlos e Ronaldinho. Há uma cobrança com a
participação dos quatro.
Quatro anos atrás, o treino de
sábado antes da decisão dominical da Copa da França foi tranquilo assim. No dia seguinte, o impacto da derrota por 3 a 0 e o mistério: o que se passara com Ronaldo, que crise fora aquela?
Com centenas de jornalistas
brasileiros naquele Mundial, nenhum planejamento se preocupou em seguir o ônibus da seleção
do Château de Grande Romaine
ao Stade de France. Ronaldo não
seguiu nele, indo para o estádio
após passar numa clínica.
O plantão, contudo, quase certamente seria inócuo: o château
tinha mais de uma saída; a polícia
vetava a aproximação aos ônibus
e aos carros, impedindo que se
visse quem estava -ou não-
dentro; e várias vezes, quando
queriam, pessoas saíam sem ser
notadas.
A vigilância jornalística do ônibus da seleção foi instituída na
Copa de 94, depois que a Folha registrou sozinha o ônibus quebrado numa estrada, e os atletas pedindo carona. Na final de 98, foi
esquecida. Hoje, é possível que
haja uma procissão para ver se a
ida para o estádio correu sem problemas -e se com Ronaldo está
tudo bem.
Para o atacante, e muitos companheiros seus, a Copa-2002 é
uma espécie de acerto de contas.
Dele com ele, e dele com a história
do futebol. O desenlace da final
não muda em nada -para mais
ou menos- o talento que tem,
mas estabelece marcos.
Nos últimos anos, Ronaldo leu e
ouviu que estava liquidado por
um joelho, que tivera o apogeu
precoce e que lhe faltava cabeça
para conviver com tensões. Rivaldo foi carimbado como jogador
de clube. Roberto Carlos, um virtuose incapaz de transformar o
dom em poderio coletivo. Cafu,
um inepto sem técnica. Scolari,
um tosco teimoso.
É sob a espada dessas sentenças
-corretas ou não-, algumas
com ambições de perpetuidade
por alguns ""juízes", que a seleção
joga hoje. A batalha é de uma
equipe inteira contra outra, mas
também um embate individual
para escrever ou reescrever trajetórias. É a guerra de cada um.
O local não poderia ser mais
simbólico. O Japão produziu
grandes guerreiros através dos
tempos. O espírito eternizou-se.
Nos anos 1990, quando foi criada
a liga japonesa de futebol, proibiram-se empates. Nenhum jogo
terminava em igualdade. Pênaltis
decidiam. Era preciso haver sempre um vencedor e um derrotado.
Como logo mais.
Texto Anterior: José Roberto Torero: Por uma final à altura dos nossos sonhos Próximo Texto: Kenneth Maxwell: As duas batalhas do Brasil Índice
|