São Paulo, domingo, 03 de outubro de 2004

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CRÍTICA

Desconhecimentos gerais no "reality show"

BIA ABRAMO
COLUNISTA DA FOLHA

É difícil , quase impossível, falar desse assunto sem esbarrar na arrogância, no elitismo, no pedantismo mais besta; mas é também difícil, quase impossível, assistir a "Sem Saída", o "reality-game-show" da Record e não se espantar com, vamos lá, a ignorância dos participantes.
"Quantos segundos há em 5 minutos?"; "Em qual cidade nasce quem é soteropolitano?"; "Quantos dias tem o mês de setembro?" e "Qual é o Estado brasileiro que faz fronteira com o Rio Grande do Sul?" são algumas das perguntas que recentemente receberam olhares interrogativos, muxoxos de perplexidade ou "não sei" como resposta.
OK, pode-se argumentar que a situação de tensão embota os pensamentos e trava as línguas. Em "Sem Saída" é preciso vencer um jogo de perguntas para permanecer no programa. As questões podem ser sobre "conhecimentos gerais e cultura popular" ou sobre temas que os participantes devem "estudar" ou, ainda, sobre conversas e acontecimentos do dia-a-dia do próprio programa.
Claro, deve-se argumentar que a definição do repertório de conhecimentos que são ou deveriam ser, de fato, gerais é bastante problematizável. Também há que assinalar que "cultura popular" é uma adaptação imprópria de cultura pop, e que o que o pop tem de popular no mundo anglo-saxão não é assim tão transferível para a realidade brasileira.
Essas e outras ressalvas, se podem relativizar casos mais ou menos isolados de erros crassos, não explicam, entretanto, um fenômeno que se poderia descrever como de uma relação perto do zero com o conhecimento. Mais do que aquilo que ignoram, é chocante o fato de as pessoas não demonstrarem nenhum incômodo por isso. No máximo, elas lamentam a sua falta de sorte, não o fato de que não sabem.
Saber é uma atividade que pertence ao terreno do acaso, do chute, não da formação básica, do mínimo de informações sobre o mundo que uma pessoa alfabetizada (e há, entre os participantes, quem tenha completado o terceiro grau) tem que ter. E, na verdade, essa relação deteriorada com o conhecimento não é restrita aos participantes: também aqueles que elaboram as perguntas que não serão respondidas via de regra valorizam a informação acessória, estapafúrdia.
O "Show do Milhão", do SBT, jogava com o descompasso entre a simplicidade de algumas perguntas e a ultra-especificidade de outras. Além disso, Silvio Santos e sua perversidade ("dois e dois são quatro? Você tem certeza disso?") eram capazes de desestabilizar qualquer certeza.
Mas em "Sem Saída" não há nem essa manipulação maligna. As perguntas se limitam ao simplório e o apresentador Márcio Garcia se abstém de comentários sarcásticos, não esboça nenhuma expressão de surpresa.
E ainda assim, nesse ambiente pouco hostil, eles continuam não fazendo "a menor idéia". Ou seja, o buraco é mesmo lá embaixo e, ao que parece, sem muita saída.


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