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MÚSICA
Projeto agrupa Clementina de Jesus, Tia Doca e Geraldo Filme em série de "vissungos", canções em língua africana
"Canto" encurta distância entre sambas de RJ e SP
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL
Mais uma relíquia da MPB
que sai do segredo: a Eldorado reedita o raríssimo "O Canto
dos Escravos", que reuniu pela
primeira e única vez num mesmo
disco, em 1982, as matriarcas cariocas Clementina de Jesus e Tia
Doca e o sambista paulista de gueto Geraldo Filme.
O projeto original consistia em
agrupar nas vozes negras dos três
artistas uma série de "vissungos",
cantos em língua africana que
eram levados pelos escravos nas
minerações de Diamantina (MG).
A matriz do álbum foi o livro "O
Negro e o Garimpo em Minas Gerais" (43), de Aires da Mata Machado Filho. Continha 65 partituras de cantos de dialeto banto, das
quais 14 foram selecionadas para
serem distribuídas entre as vozes
de Clementina, Geraldo e Doca.
Os cantos do tempo da escravidão, todos sem nome, se seguem
num linguajar misto -ao final
das letras transcritas, pequenos
sumários (também recolhidos do
livro) explicam os assuntos de
que tratam as cantigas.
Os três cantores só dividem efetivamente o primeiro canto -a
partir dali, vão se revezando em
faixas compostas de voz e percussão. Mas o encontro vaza para o
terreno do simbólico: se fizesse
sucesso à época, "O Canto..." teria
significado uma raríssima comunhão entre os distanciados samba
carioca e samba paulista.
Unidos pela corrente sanguínea
de ex-escravos, os três artistas traziam na bagagem trajetórias musicais difíceis, acidentadas.
Clementina de Jesus (1901-87)
encerrara em 79 fase de mais de
uma década gravando na EMI-Odeon -"O Canto..." seria o último registro da voz de Clementina
num álbum, digamos, seu. Geraldo Filme (1928-95) vinha da história marginalizada num ambiente triplamente marginalizado, o
do samba paulistano. Estreara antes com "Geraldo Filme" (80). "O
Canto..." foi também seu último
disco. Tia Doca, 70, era pastora da
Portela e vocalista de apoio no
samba carioca. Segue com carreira discográfica intermitente.
O disco da Eldorado agia, pois,
em várias frentes. De cara, trazia à
tona os saberes espontâneos e
quase perdidos dos negros aprisionados em séculos que já haviam ido embora. Na segunda camada, revigorava as vozes nobres,
estrondosas e quase perdidas dos
contemporâneos (e livres) Clementina, Geraldo e Doca.
Hoje, Tia Doca continua por aí,
e o disco quase secreto ganha enfim uma segunda chance. Os majestosos Clementina e Geraldo Filme é que não voltam, a não ser
por este CD e por álbuns ainda
não relançados.
O Canto dos Escravos
Artistas: Clementina de Jesus, Geraldo
Filme e Doca
Lançamento: Eldorado
Quanto: R$ 28, em média
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