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Exercícios da memória
Henri Cartier-Bresson
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Protesto em Paris, fotografado em 1958 |
Em entrevistas inéditas, Henri Cartier-Bresson fala sobre a sua relação com os amigos e a arte
MICHEL GUERRIN
DO "MONDE"
Em entrevistas inéditas, Henri
Cartier-Bresson, morto na última
terça, aos 95 anos, fala de seu trabalho, de seus amigos, de suas relações com a imprensa, de sua
agência e de seu gosto pela arte.
Tivemos vários encontros com
Henri Cartier-Bresson, a partir de
1990, em seu apartamento iluminado na Rue de Rivoli. Às vezes
para uma entrevista ao "Monde",
várias vezes pelo simples prazer
de conversar com ele. Algumas
das entrevistas foram gravadas.
De vez em quando Cartier-Bresson recusava o gravador. "Faz
bem trabalhar a memória", dizia.
Os jornais e a época
Dizem que os jornais dos anos 50
eram melhores do que os de hoje.
Era a saúde do mundo que estava
melhor. Hoje nos pedem que vivamos em segunda mão. Alguns
dias atrás eu estava no TGV (o
trem de alta velocidade). À minha
frente, uma mulher lia uma revista de psicologia. Eu disse a ela que,
no meu tempo, as pessoas se falavam nos trens e aprendiam psicologia dessa maneira. Ela riu. Concordou comigo. Ter tempo, tomar tempo para fazer as coisas,
foi o único luxo de minha vida. As
pessoas apressadas são infelizes.
Cioran já disse que a morte nunca
exigiu que se marcasse uma hora
para ela. O que me alimenta é a
imprensa escrita, o ponto de vista
dos redatores, os comentários.
Leio os jornais diários para ficar
em contato com a vida do dia-a-dia. Não leio o tipo de revista em
que as mulheres são inatingíveis.
Um ganha-pão
Para mim, a imprensa foi apenas
um ponto de apoio. Ela me permitiu viver, foi um ganha-pão.
Convivi muito bem com a imprensa. Durante minhas reportagens, antes e depois da guerra, eu
fotografava todos os dias, mas
não tinha nem tempo nem vontade de me interessar pela publicação das fotos. A agência Alliance
Photo, antes da guerra, e a Magnum, no pós-guerra, se encarregavam de vender as imagens. Eu
passava três quartos do tempo
viajando, não via as fotos publicadas. Meu tesouro de guerra não é
a imprensa, é a exposição e o livro,
o lado visual.
O "Ce Soir", de Aragon
Nos anos 30 trabalhei durante alguns meses para o diário comunista "Ce Soir", de [Louis] Aragon. Foi lá que conheci Robert
Capa e Chim Seymour, com os
quais fundei a agência Magnum,
depois da guerra. Éramos os fotógrafos credenciados do jornal.
Aragon nos deixava totalmente à
vontade. Vivíamos à margem da
sociedade; o dinheiro de um era o
dinheiro do outro. Ao nosso lado
havia outros fotógrafos, colegas
sindicalizados. O "Ce Soir" me
enviou a Londres, juntamente
com Paul Nizan, para cobrir a coroação do rei Edward 8º. Foi
quando fiz aquela foto de pessoas
dormindo num parque.
Em 1934, um amigo organizou
em sua casa uma reunião contra o
coronel de La Roque. Havia muitos intelectuais, Guehenno, talvez
Malraux, todos os surrealistas,
menos Aragon e Sadoul, que tinham viajado a Kharkov, na
União Soviética, para um congresso. Sabemos o que foi feito
deles -o movimento surrealista
foi denunciado nesse congresso,
que marcou a ruptura entre os comunistas, que seguiram Aragon, e
os surrealistas, que seguiram Breton. Eu, de minha parte, me sentia
próximo de um ideal comunista,
um pouco como os primeiros
cristãos. Depois mudei um pouco
de idéia com a leitura do livro de
Gide sobre a URSS.
Mas não sou um homem de
partido, sou um revoltado. Assim,
não cheguei a conhecer verdadeiramente Aragon, que se desentendeu com os surrealistas. Quanto a Breton, a última vez em que
nos vimos não foi bem. Jantamos
juntos, e ele me disse: "Você que
gosta de Cézanne", esboçando
um movimento como se fosse me
dar um soco no queixo. Respondi:
"Sim, e daí?". Breton respondeu:
"Esse sr. nunca teve a coragem de
dizer à sua mulher que, para pintar banhistas, era preciso contar
com corpos femininos de verdade". Breton tinha um ponto de
vista tão moral... Depois disso ele
falou mal de Alberto Giacometti.
Foi o fim. Alberto era meu mestre
em termos de pensamento.
Manipulação das revistas
Para mim, as imagens devem ser
mudas. Elas precisam falar ao coração e aos olhos, não devem ser
ligadas ao texto. Podemos fazer
uma imagem na imprensa dizer
qualquer coisa. Mostrei minha foto do papa à minha mãe, que era
uma mulher religiosa que lia os
pré-socráticos, Demócrito, Heráclito, Espinoza. Ela disse que era
minha foto mais religiosa. Um
amigo me declarou, pelo contrário, que era a mais anti-religiosa
possível. Então... A imprensa ilustrada aproveita essa ambiguidade
das imagens para manipular.
Com freqüência, ela faz mais comunicação do que jornalismo.
A agência Magnum
Quando criamos a Magnum, eu e
Chim Seymour nos perguntávamos como faríamos para que Capa pudesse sobreviver, ele que vivia em grande estilo, oferecendo
refeições suntuosas. Éramos ingênuos. Na verdade, foi ele quem
nos fez sobreviver. Chim imaginou os estatutos e a organização
da Magnum, mas era Capa quem
negociava os contratos com os
jornais. Ele o fazia muito bem -e
como! Eu ficava espantado com
seu dom da palavra. Capa não era
comerciante, mas jogador de pôquer. Se Chim e eu tivéssemos ido
aos jornais para falar de dinheiro,
teríamos sido lamentáveis.
É preciso lembrar que o mundo
era outro, não havia televisão. Como imaginar, quando me vi na
China no momento da revolução,
que não havia outros fotógrafos
comigo? Quando parti para a
URSS, em 1954, não foi para a
"Paris Match", mas para a Magnum. Foi apenas mais tarde que a
reportagem saiu na revista.
Devo muitíssimo à Magnum.
Especialmente pelos arquivos,
que constituem a riqueza da
agência. Sabíamos que nossos arquivos eram nossa "segurança".
O problema são os vínculos entre
a imprensa e o dinheiro, especialmente com a publicidade. Espero
que o lado aventureiro da Magnum continue presente sempre.
Numa empresa pequena, é preciso permanecer aventureiro.
Um trabalho político
As exposições permitem que se dê
forma ao conjunto de imagens. É
a força do documentário, poder
conferir forma a um tema. Mas
saber o que esse conjunto prova,
não sei nada. Dou meu testemunho de que estive lá e que vi aquilo. Sou herdeiro de uma tradição,
a de Walker Evans. Tomemos o
caso da globalização, que me apavora. O problema é que a Leica
não pode dar conta dela. Acho
que não se pode fazer um trabalho diretamente político com a
máquina fotográfica. Não posso
provar com minha máquina, posso apenas testemunhar a partir da
vida de todos os dias. Aliás, existe
um buraco na Magnum, que é a
guerra da Argélia.
Nunca pus meu trabalho a serviço de uma idéia. Tenho horror
às imagens que defendem uma tese. É o subconsciente que joga, e é
preciso respeitá-lo. Querer "pensar" alguma coisa -não, não e
não! As pessoas estão fartas de
idéias. Como se houvesse um prêmio por ser inteligente.
Não tenho nada a provar -eu
vi isso, eu vi aquilo. Confio no homem, mas acho a sociedade lamentável. Por outro lado, não há
dúvida de que vejo aquilo que outros não enxergam. Corremos,
suamos e fazemos fotos. Existem
os fotógrafos como eu, que sofreram duas doenças profissionais,
nos joelhos e na coluna vertebral.
E existem os fotógrafos conceituais, que pensam. Essa noção de
artista é definida pela burguesia
do século 19 -Haydn tinha que
mostrar que tinha as mãos limpas
como as das pessoas da casa.
Dizem que sou surrealista. Sem
dúvida, mas poucas pessoas compreendem que sou o surrealista
da realidade. As pessoas acham
que, para ser surrealista, é preciso
obrigatoriamente colocar uma lata de lixo na cabeça. Meu sogro
me disse um dia: "Henri, você não
tem bom senso!". O bom senso
não foi uma qualidade primordial
para os surrealistas. O surrealismo não é o chapéu engraçado, é
mais do que isso.
Música, arte, cinema
Ouço música o tempo todo enquanto trabalho -jazz, música
clássica. Na escola, eu tocava flauta para não precisar jogar futebol.
Um dia meu professor, que era do
Conservatório, me disse que eu
não tinha ouvido. Foi ele quem
me incentivou a fazer outra coisa:
desenho, pintura. Durante toda a
minha vida, sempre que eu ia fotografar em um país, minha recompensa era ir aos museus. Foi
ali que compreendi que fazer um
retrato significa representar a si
mesmo. Nos retratos feitos por
Avedon, é Avedon quem eu vejo.
Mas, você sabe, a fama... Me irritava com alguém que me perguntava se tal pintor era conhecido.
Respondi que ele provavelmente
era conhecido por seu zelador e
pelo serviço de informações. No
cinema, que aprendi em 1935,
com Paul Strand, há um discurso
a conduzir, pois você nunca vê a
imagem: é preciso ordenar as frases, conhecer a gramática. É um
discurso com imagem. Enquanto
isso, na fotografia, há o lado aventureiro e existe sempre a preocupação da geometria.
"Jesuíta protestante"
Falar de mim não interessa a ninguém. O que vale é a atitude, aliada a uma certa cultura. Eu leio
muito, é uma maneira de viver.
Mas sou reservado. Quando se fala de mulheres, eu enrubesço.
Jean Lacouture me dedicou seu livro sobre os jesuítas: "A um jesuíta protestante".
Medo da morte? Da morte, não,
mas do sofrimento, sim, penso
nisso a toda hora. É normal. Nos
EUA me sinto pouco à vontade,
porque não se fala da morte. Prefiro o México ou a Espanha, onde
existe uma continuidade natural
entre a vida e a morte. Durante
uma exposição da Magnum em
Londres, respondi a uma pessoa
que não me reconheceu e que me
fez uma pergunta sobre HCB. Eu
disse: "Ele morreu faz tempo e era
um safado. Pergunte aos fotógrafos -eles lhe dirão por que".
Tenho horror da segregação entre jovens e velhos. Perguntei à loja da prefeitura até quando era válido um cano que eu tinha acabado de comprar. "Até 1995." Respondi que tenho 82 anos e que o
cano ainda vai durar muito tempo. Um negro alto me olhou fixamente: "82 anos!". Eu o olhei e lhe
disse que, quando tinha 21 anos,
quase morri em seu país por causa de uma febre. Como ele ficou
surpreso, acrescentei: "Você deve
ser da Costa do Marfim". Ele respondeu: "Sim. Venha me contar a
história num café. Para nós, os velhos são a memória". Eu lhe falei
da África que conheci, falei de Céline, palavra por palavra. Espero
comunicar uma alegria e uma esperança de viver. Pois, se sou ladrão -e eu teria gostado de ser
Arsène Lupin, mas não sou tão talentoso assim-, sou um ladrão
que doa.
Tradução de Clara Allain
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