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Imagem de vanguardista de projeção internacional de Haroldo de Campos não deve obscurecer seu lado metódico
Poeta foi referência na renovação da linguagem
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
"Personagem de uma novela de Borges", segundo o
ensaísta italiano Umberto Eco;
"cachalote com barbas de Netuno", no carinhoso retrato feito pelo argentino Julio Cortázar; "cosmonauta do significante", na expressão cunhada pelo crítico João
Alexandre Barbosa.
Esses esboços de Haroldo de
Campos revelam, a um só tempo,
a complexidade de sua obra e o
impacto de sua presença pública,
que transcendeu em muito os limites da cultura brasileira, estabelecendo correspondências afetivas e intelectuais com autores
como Ezra Pound, Octavio Paz e
John Cage, além dos já citados.
O cosmopolitismo de Haroldo
de Campos não só contribuiu decisivamente para sintonizar o
Brasil com as vanguardas do pós-guerra como fez do autor de "Galáxias" uma referência para os renovadores da linguagem poética.
Num ensaio de 1955, ele já utilizava a expressão "neobarroco", termo que, nos anos 60 e 70, iria batizar o movimento latino-americano formado ao redor dos cubanos
Severo Sarduy e Lezama Lima.
Mas a imagem do vanguardista
de projeção internacional, que se
firmou sobretudo a partir do fim
dos anos 50 com o movimento da
Poesia Concreta, não deve obscurecer uma outra faceta da trajetória de Haroldo de Campos: o seu
lado metódico, de operário da
poesia. Ao "labor sintaxista" correspondia um labor propriamente dito, um cotidiano que conjugava o trabalho como funcionário
da USP e contatos com pesquisadores, editores e tradutores que o
ajudaram a criar em São Paulo
(onde foi professor na PUC) um
espaço de circulação de idéias estéticas e publicação de textos.
As relações tensas, porém respeitosas, que Haroldo de Campos
manteve com outros teóricos
-que procuravam pensar a literatura brasileira a partir de bases
mais sociológicas, colocando a
identidade nacional como uma
questão central da literatura brasileira- se devem em grande
parte a esse perfil biográfico.
Ao contrário da maioria dos intelectuais brasileiros, ele não pertencia a uma elite social para
quem a estratificação social é um
problema que deve ser compreendido e reparado, mas a uma
classe média para a qual o trabalho intelectual é um "ofício" que
pode ser separado da política.
Haroldo de Campos nunca sucumbiu a esses determinismos
ideológicos, mantendo uma atuação política paralela à atividade literária. Compôs poemas de intervenção em momentos como a
candidatura de Lula à Presidência
da República em 1994 ou o massacre dos sem-terra em Eldorado
dos Carajás. Mas talvez esses sejam os momentos de menor voltagem de sua produção, cujo epicentro é a anexação de novos territórios poéticos por meio da atividade tradutória (suas "transcriações" que vão de Homero,
Dante e os provençais franceses
até Mallarmé, Joyce e Paz) e da
atitude ensaística de resgate de
autores que não cabem nos esquemas normativos da historiografia literária.
No que diz respeito à invenção,
Haroldo de Campos parte, em
"Auto do Possesso", do diálogo
com o simbolismo mais agressivo, que explicita os elementos de
concreção da linguagem. Chega
às operações de permutação entre
os signos e o espaço visual que
marcam os livros da fase concretista, nos quais a materialidade da
palavra reitera a essência formal
da linguagem literária, ao mesmo
tempo em que amplia suas possibilidades de significação.
Mesmo depois da fase "heróica"
do concretismo, com seus manifestos e planos-pilotos, Haroldo
de Campos persevera nessa experimentação, escrevendo um livro
enigmático como "Galáxias" e
um de poemas como "Crisantempo", em que o ímpeto vanguardista cede o lugar a "epifanias pós-utópicas", momentos de celebração das leituras, das viagens e dos
encontros com amigos.
A obsessão borgeana pela intertextualidade lhe valeu a pecha de
um formalismo alienado e alienante. Como lembrava, porém,
durante os anos de chumbo ele
não se auto-exilou, mas sobreviveu à asfixia do regime militar por
meio de uma resistência silenciosa, em que a literatura de vanguarda era uma forma possível de
protesto, de ruptura com a linguagem conservadora e estereotipada em que esse mundo sombrio se reproduzia.
Mais recentemente, ele teve de
empreender uma outra forma de
resistência, em relação à saúde.
Quando lhe perguntavam como
lidava com essas crises cada vez
mais frequentes, Haroldo de
Campos conduzia o assunto para
sua transcriação da "Ilíada", de
Homero. Afinal, ele só encontrava
refúgio naquilo que chamava de
"homeroterapia".
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