São Paulo, domingo, 18 de abril de 2004

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ANÁLISE

Distribuição de aparelhos marca desigualdade social e regional

ESTHER HAMBURGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em um país com altas taxas de analfabetismo, baixa escolaridade e pouco hábito de leitura, a televisão ocupou um lugar estratégico. Uma forte indústria local, capaz de produzir programas na língua portuguesa, com referências a eventos, modas e produtos recém-lançados, foi o carro-chefe na formação de um forte mercado consumidor nos anos do chamado "milagre brasileiro".
É sabido que a TV, ao menos até o final da década de 90, capitaneava a lista de eletrodomésticos mais vendidos. Pesquisas em bairros populares em regiões metropolitanas revelam que há mais televisores do que máquinas de lavar, artigo que teoricamente economizaria tempo de trabalho para o consumidor.
A TV, no Brasil, se tornou gênero de primeira necessidade. O número de domicílios com mais de um aparelho de TV é grande nos centros urbanos, seja em bairros de classe média ou em favelas.

Crescimento lento
Embora a TV tenha sido inaugurada relativamente cedo no Brasil, em 1950, seu crescimento inicial foi lento. Em 1960 a TV atingia somente 4,61 % dos domicílios brasileiros. Em 1970 esse número chega a 22,8%, em 1980 a 56,1%, e é somente na década de 90 que o aparelho chega à maioria dos domicílios do país.
A distribuição de aparelhos, em cores e em preto-e-branco, pelas diversas regiões e dentro de cada região, em domicílios onde moram famílias com maior ou menor poder aquisitivo, expressa as diferenças sociais e regionais que marcam uma sociedade cindida pela desigualdade.
Em geral, os índices sugerem novidades que caracterizam o Brasil pós-regime militar. A região Nordeste é recordista em número de aparelhos de TV em preto-e-branco.
A televisão chegou mais tarde aos Estados das regiões Norte e Centro-Oeste, mas, provavelmente acompanhando o processo de ocupação intensa que atingiu aquelas regiões nas últimas décadas do século 20, o número de domicílios com TV e com TV colorida sintomaticamente cresceu mais nessas regiões do que nos tradicionais Estados nordestinos, rincões do poder político tradicional.
No Brasil urbano, a TV em cores rapidamente transformou aparelhos em preto-e-branco em auxiliares, dedicados a espaços e horários específicos. Pesquisa em uma favela paulistana, realizada em 1997, revelou que quase 90% dos domicílios possuíam pelo menos um aparelho de TV em cores, em geral situado na sala de estar, local nobre da casa.
Bares, cabeleireiros e os inúmeros outros pequenos estabelecimentos comerciais de propriedade de moradores possuíam aparelhos em preto-e-branco.
Fora dos bairros populares, as cozinhas de mansões e casas de classe média alta já possuem aparelhos coloridos para "distrair" os empregados.
Aparelhos em preto-e-branco de TV portátil permitem que o enorme exército de guardas e porteiros, instalados em guaritas ou balcões de recepção, se mantenham informados sobre os resultados de torneios esportivos, o andamento das novelas, a situação do trânsito, a previsão do tempo etc. Um pouco como o radinho de pilha, esses inúmeros portáteis em preto-e-branco constituem uma rede diversificada de alto -e raro- poder de penetração nacional.
Essa rede, em cores, em preto-e-branco, de aparelhos grandes, pequenos, com som estéreo ou mono, instalados em casa ou no trabalho, pode estar prestes a ganhar conexão com o universo virtual da internet.
Diante de tantas possibilidades faltam conteúdos que valham a pena. Não há como justificar que engenhoca com tal potencial de conectar milhares de pessoas, nas mais diversas regiões e classes sociais, permaneça relegada a modelos de produção ultrapassados.


Esther Hamburger é antropóloga e professora da ECA-USP


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