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ANÁLISE
Distribuição de aparelhos marca desigualdade social e regional
ESTHER HAMBURGER
ESPECIAL PARA A FOLHA
Em um país com altas taxas de
analfabetismo, baixa escolaridade e pouco hábito de leitura, a
televisão ocupou um lugar estratégico. Uma forte indústria local,
capaz de produzir programas na
língua portuguesa, com referências a eventos, modas e produtos
recém-lançados, foi o carro-chefe
na formação de um forte mercado
consumidor nos anos do chamado "milagre brasileiro".
É sabido que a TV, ao menos até
o final da década de 90, capitaneava a lista de eletrodomésticos
mais vendidos. Pesquisas em
bairros populares em regiões metropolitanas revelam que há mais
televisores do que máquinas de
lavar, artigo que teoricamente
economizaria tempo de trabalho
para o consumidor.
A TV, no Brasil, se tornou gênero de primeira necessidade. O número de domicílios com mais de
um aparelho de TV é grande nos
centros urbanos, seja em bairros
de classe média ou em favelas.
Crescimento lento
Embora a TV tenha sido inaugurada relativamente cedo no
Brasil, em 1950, seu crescimento
inicial foi lento. Em 1960 a TV
atingia somente 4,61 % dos domicílios brasileiros. Em 1970 esse
número chega a 22,8%, em 1980 a
56,1%, e é somente na década de
90 que o aparelho chega à maioria
dos domicílios do país.
A distribuição de aparelhos, em
cores e em preto-e-branco, pelas
diversas regiões e dentro de cada
região, em domicílios onde moram famílias com maior ou menor poder aquisitivo, expressa as
diferenças sociais e regionais que
marcam uma sociedade cindida
pela desigualdade.
Em geral, os índices sugerem
novidades que caracterizam o
Brasil pós-regime militar. A região Nordeste é recordista em número de aparelhos de TV em preto-e-branco.
A televisão chegou mais tarde
aos Estados das regiões Norte e
Centro-Oeste, mas, provavelmente acompanhando o processo de
ocupação intensa que atingiu
aquelas regiões nas últimas décadas do século 20, o número de domicílios com TV e com TV colorida sintomaticamente cresceu
mais nessas regiões do que nos
tradicionais Estados nordestinos,
rincões do poder político tradicional.
No Brasil urbano, a TV em cores
rapidamente transformou aparelhos em preto-e-branco em auxiliares, dedicados a espaços e horários específicos. Pesquisa em uma
favela paulistana, realizada em
1997, revelou que quase 90% dos
domicílios possuíam pelo menos
um aparelho de TV em cores, em
geral situado na sala de estar, local
nobre da casa.
Bares, cabeleireiros e os inúmeros outros pequenos estabelecimentos comerciais de propriedade de moradores possuíam aparelhos em preto-e-branco.
Fora dos bairros populares, as
cozinhas de mansões e casas de
classe média alta já possuem aparelhos coloridos para "distrair" os
empregados.
Aparelhos em preto-e-branco
de TV portátil permitem que o
enorme exército de guardas e
porteiros, instalados em guaritas
ou balcões de recepção, se mantenham informados sobre os resultados de torneios esportivos, o andamento das novelas, a situação
do trânsito, a previsão do tempo
etc. Um pouco como o radinho de
pilha, esses inúmeros portáteis
em preto-e-branco constituem
uma rede diversificada de alto -e
raro- poder de penetração nacional.
Essa rede, em cores, em preto-e-branco, de aparelhos grandes, pequenos, com som estéreo ou mono, instalados em casa ou no trabalho, pode estar prestes a ganhar
conexão com o universo virtual
da internet.
Diante de tantas possibilidades
faltam conteúdos que valham a
pena. Não há como justificar que
engenhoca com tal potencial de
conectar milhares de pessoas, nas
mais diversas regiões e classes sociais, permaneça relegada a modelos de produção ultrapassados.
Esther Hamburger é antropóloga e
professora da ECA-USP
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