São Paulo, domingo, 18 de abril de 2004

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DANÇA/CRÍTICA

Balé da Cidade apresenta hoje no Teatro Municipal "Licores da Carne", espetáculo do coreógrafo francês

Preljocaj tematiza o erótico e o transcendental

INÊS BOGÉA
CRÍTICA DA FOLHA

A matéria escavada em movimento propõe cadências, linhas, silêncios. São gestos que cortam o espaço, ora com precisão angulosa, ora com suavidade. Em "Liqueurs de Chair" ("Licores da Carne", 1988), que estreou quarta-feira passada com o Balé da Cidade, o coreógrafo francês Angelin Preljocaj trabalha as paixões, nos encontros de um corpo com outro -corpos contra corpos decantando os "desequilíbrios dos sentidos".
Nove bailarinos e um músico dançam cercados por paredes "blindadas", com uma grande máquina erótica oitocentista ao fundo, numa iluminação difusa, em meio à fumaça. De início, duas mulheres ficam mordiscando um homem parado no centro do palco. Em seguida, vem gente que cruza o espaço, se joga, é puxada pela gola do sobretudo etc., num vaivém incessante. Duos tomam a cena, cada corpo tentando agarrar-se a si mesmo.
Num dos grandes momentos da noite, o pé dos homens vira o chão das moças; casais se entrelaçam sinuosamente, sem perder a dinâmica dos gestos. Insinuam uma falta e num impulso buscam a entrega.
A dança se completa na parceria com música, em parte ao vivo (com o saxofonista Laurent Petitgand). O músico chega a dançar com uma bailarina, em cena de muita ironia e sensualidade.
Ironia e sexo, aliás, são o que não falta, seja em versão natural, seja com auxílio da máquina libertina, em que uma mulher se masturba, enquanto quatro homens rolam no chão numa dança de dinâmica pesada.
O Balé da Cidade, em ótima forma, confere acentos próprios à coreografia. Cada gesto tem seu desenho justo, geométrico e preciso. Se, no conjunto, ainda se podem ver pequenos desencontros, é de se crer que a sincronia logo virá, pela qualidade individual dos gestos, com o ritmo tão bem incorporado. Nesta semana, pôde-se ver também a própria Companhia Preljocaj, no Sesc Vila Mariana, dançando a sua última criação: "Near Life Experience" ("Muito Perto da Vida", 2003). Obra que representa uma virada na carreira de Preljocaj, após um ano sabático e uma ida ao topo do Kilimanjaro, tematiza a suspensão dos sentidos no limite da vida: o êxtase ou deslumbramento, que se contrapõe aos temas mais familiares do coreógrafo, de índole crítica e comportamental.
Com música do duo francês Air (vanguarda pop eletrônica), o espetáculo explora gestos largos e suaves, bem diferentes dos movimentos acentuados de uma peça como "Licores..." O encadeamento de cada cena comprova a qualidade do coreógrafo, mas a peça como um todo corre o risco de apelos frágeis, de uma expressividade mensageira.
Seqüências de grandes "tableaux", de inspiração pictórica, sugerem algo como um Delacroix "new age". Mas o romantismo do pintor foi traduzido em registro alheio: imagem, aqui, rima sempre com mensagem.
O fio da vida (literalmente um fio) é vermelho; liga um corpo ao outro, traçando o ar e o chão. Duas bailarinas flutuam, tocando bolhas de vidro. No final, um homem-bebê, coberto de espuma branca, nasce de dentro de um grande novelo de lã.
Com a companhia em ponto de bala, e o coreógrafo jamais exibindo menos que uma compreensão original dos caminhos do palco, o espetáculo vale, no mínimo, como aposta; e, em muitos momentos, leva Preljocaj a invenções deslumbrantes, onde a dança se afirma para além de qualquer sentença de vida ou de morte.


Licores da Carne
   
Onde: Teatro Municipal (pça. Ramos de Azevedo, s/nš, tel: 0/xx/11/223-3022)
Quando: hoje e 21/4, às 17h; 20/4, às 21h
Quanto: de R$ 10 a R$ 15



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