|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
DANÇA/CRÍTICA
Balé da Cidade apresenta hoje no Teatro Municipal "Licores da Carne", espetáculo do coreógrafo francês
Preljocaj tematiza o erótico e o transcendental
INÊS BOGÉA
CRÍTICA DA FOLHA
A matéria escavada em movimento propõe cadências,
linhas, silêncios. São gestos que
cortam o espaço, ora com precisão angulosa, ora com suavidade.
Em "Liqueurs de Chair" ("Licores
da Carne", 1988), que estreou
quarta-feira passada com o Balé
da Cidade, o coreógrafo francês
Angelin Preljocaj trabalha as paixões, nos encontros de um corpo
com outro -corpos contra corpos decantando os "desequilíbrios dos sentidos".
Nove bailarinos e um músico
dançam cercados por paredes
"blindadas", com uma grande
máquina erótica oitocentista ao
fundo, numa iluminação difusa,
em meio à fumaça. De início, duas
mulheres ficam mordiscando um
homem parado no centro do palco. Em seguida, vem gente que
cruza o espaço, se joga, é puxada
pela gola do sobretudo etc., num
vaivém incessante. Duos tomam a
cena, cada corpo tentando agarrar-se a si mesmo.
Num dos grandes momentos da
noite, o pé dos homens vira o
chão das moças; casais se entrelaçam sinuosamente, sem perder a
dinâmica dos gestos. Insinuam
uma falta e num impulso buscam
a entrega.
A dança se completa na parceria
com música, em parte ao vivo
(com o saxofonista Laurent Petitgand). O músico chega a dançar
com uma bailarina, em cena de
muita ironia e sensualidade.
Ironia e sexo, aliás, são o que
não falta, seja em versão natural,
seja com auxílio da máquina libertina, em que uma mulher se
masturba, enquanto quatro homens rolam no chão numa dança
de dinâmica pesada.
O Balé da Cidade, em ótima forma, confere acentos próprios à
coreografia. Cada gesto tem seu
desenho justo, geométrico e preciso. Se, no conjunto, ainda se podem ver pequenos desencontros,
é de se crer que a sincronia logo
virá, pela qualidade individual
dos gestos, com o ritmo tão bem
incorporado. Nesta semana, pôde-se ver também a própria Companhia Preljocaj, no Sesc Vila Mariana, dançando a sua última criação: "Near Life Experience"
("Muito Perto da Vida", 2003).
Obra que representa uma virada
na carreira de Preljocaj, após um
ano sabático e uma ida ao topo do
Kilimanjaro, tematiza a suspensão dos sentidos no limite da vida:
o êxtase ou deslumbramento, que
se contrapõe aos temas mais familiares do coreógrafo, de índole
crítica e comportamental.
Com música do duo francês Air
(vanguarda pop eletrônica), o espetáculo explora gestos largos e
suaves, bem diferentes dos movimentos acentuados de uma peça
como "Licores..." O encadeamento de cada cena comprova a qualidade do coreógrafo, mas a peça
como um todo corre o risco de
apelos frágeis, de uma expressividade mensageira.
Seqüências de grandes "tableaux", de inspiração pictórica,
sugerem algo como um Delacroix
"new age". Mas o romantismo do
pintor foi traduzido em registro
alheio: imagem, aqui, rima sempre com mensagem.
O fio da vida (literalmente um
fio) é vermelho; liga um corpo ao
outro, traçando o ar e o chão.
Duas bailarinas flutuam, tocando
bolhas de vidro. No final, um homem-bebê, coberto de espuma
branca, nasce de dentro de um
grande novelo de lã.
Com a companhia em ponto de
bala, e o coreógrafo jamais exibindo menos que uma compreensão
original dos caminhos do palco, o
espetáculo vale, no mínimo, como aposta; e, em muitos momentos, leva Preljocaj a invenções deslumbrantes, onde a dança se afirma para além de qualquer sentença de vida ou de morte.
Licores da Carne
Onde: Teatro Municipal (pça. Ramos de
Azevedo, s/nš, tel: 0/xx/11/223-3022)
Quando: hoje e 21/4, às 17h; 20/4, às
21h
Quanto: de R$ 10 a R$ 15
Texto Anterior: Análise: Distribuição de aparelhos marca desigualdade social e regional Próximo Texto: Artes plásticas: Mostra de vídeos no Paço faz público dormir Índice
|