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RETROSPECTIVA
Cineasta português, morto em fevereiro, tem exibido seu testamento estético, político e existencial
João César Monteiro filma o próprio réquiem
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
"Vai e Vem", finalizado
pouco antes da morte do
cineasta português João César
Monteiro (1939-2003), pode ser
visto como seu testamento estético, político e existencial, iluminando retrospectivamente uma
das obras mais originais e perturbadoras do cinema moderno.
A 27ª Mostra Internacional de
Cinema de São Paulo traz uma retrospectiva de dez longas do diretor. O espectador que ainda ignora essa obra estranha e rica não
perde nada se começar a conhecê-la pelo fim, pois "Vai e Vem" sintetiza, depura e aprofunda suas
principais linhas de força.
Aqui, o velho viúvo João Vuvu
(Monteiro), avatar mais melancólico do João de Deus que foi seu
alter ego em outros filmes, faz diariamente o mesmo percurso de
ônibus por Lisboa e volta ao casarão onde mora sozinho.
A narrativa se compõe de longos planos-sequências que encerram, cada um, uma situação autônoma: João contratando uma
"mulher a dias" (empregada diarista), João conversando com
uma amiga, João discutindo com
o filho que acaba de sair da cadeia
etc. Entre um e outro desses blocos, as viagens de ônibus.
Nessa relação episódica com os
outros, João expõe sua concepção
libertária da vida, atacando o Estado, o mercado, a religião e defendendo zelosamente suas esquisitices sexuais, ciente de que as
perversões são como que o último
reduto da individualidade num
mundo marcado pela massificação da experiência.
Monteiro foi talvez o último
anarquista do cinema, um homem para quem a estética é também uma política, ambas fundadas no erotismo e no culto à liberdade dos sentidos.
Em "Vai e Vem", reencontramos os enquadramentos fixos e
precisos, o uso parcimonioso e
certeiro da música e as referências
cruzadas que embaralham a todo
momento a alta e a baixa cultura,
o sublime e o grotesco, o pornográfico e o elegante, os versos
mais elaborados e os trocadilhos
mais infames. Alguns momentos
são antológicos. Num café mantido por religiosos, Vuvu expõe a
uma velha amiga uma versão obscena da gravidez da Virgem.
Em cena que lembra Godard, o
protagonista entrevista uma candidata a "mulher a dias" e esta lhe
fala de Lênin e empirocriticismo,
concluindo com malícia: "Sou
vermelha dos pés à cabeça". Depois, ele esfrega o chão enquanto
ela se estende no divã, lânguida
como a "Maya Vestida", de Goya.
Permeia todo o filme, a par da
sem-cerimônia com que se fala de
cus e paus, uma sensualidade esculpida sutilmente na contraluz.
Estamos na quintessência do cinema de Monteiro. A diferença,
aqui, é que o diretor/ator, já muito
doente, faz um réquiem para si
próprio. Como diz seu personagem, ao fugir do hospital: "Prefiro
agonizar ao ar livre".
Não por acaso, o único close do
filme é o longo plano final, que
mostra seu olho claro refletindo
uma praça, as árvores, o céu azul.
Artista insubmisso, da estirpe de
Buñuel e Pasolini, Monteiro manteve até o fim os olhos bem abertos para a miséria da vida, mas
também para o seu mistério e o
seu gozo.
Vai e Vem
Idem
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