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CINEMA/ARTIGO
Paixão individual e paixões coletivas
BORIS FAUSTO
ESPECIAL PARA A FOLHA
O extraordinário filme
de Eric Rohmer "A Inglesa e
o Duque" pode ser visto de três
maneiras básicas interligadas: como solução estética; como relação
amorosa e de divergências políticas entre os dois personagens
centrais; como versão da história
da Revolução Francesa.
A solução estética deixou de lado uma possível tentativa realista
de reconstrução de cidades e caminhos da França, no tempo da
Revolução. A alternativa consistiu
em construir cenários de fundo
pintado, com base no traçado de
Paris e outros ambientes da época, aí inserindo, em primeiro plano, personagens da vida real. Os
dois planos -o do "décor" fixo e
o dos atores que se movimentam- nos introduzem a um tempo e uma atmosfera do passado
como poucas vezes se logrou obter no cinema.
Com extrema sutileza, Rohmer
evita também, quase sempre, as
cenas de impacto pelo horror. Excelente exemplo, a execução de
Luís 16 é entrevista a longa distância, não por nós espectadores,
mas por dois aflitos personagens,
sob um céu de chumbo, separados do local por um extenso campo verde e ralo, visto do alto.
A paixão amorosa, convertida
em afeição mútua, envolve duas
pessoas não só de opiniões como
de temperamentos diferentes. De
um lado, Grace Elliot, aristocrata
escocesa que vive na França, no
tempo da Revolução, identificada
com a monarquia, admiradora do
rei Luís 16 e de Maria Antonieta.
De outro, Felipe, duque de Orleans, que se denominou, não por
acaso, Felipe Egalité, no curso dos
episódios revolucionários. Primo
de Luís 16, a quem odeia, o duque
é atraído pelas idéias iluministas,
aproximando-se da monarquia
constitucional.
Elliot defende seus pontos de
vista e age em função deles, com
absoluta convicção. Felipe oscila,
tratando de se identificar com os
princípios da Nação, temeroso, ao
mesmo tempo, dos excessos revolucionários. Mas ambos acabam
se aproximando, pela força da relação afetiva e pela sensação, que
domina também o espectador, de
que a torrente dos fatos, na dimensão coletiva, sobrepõe-se às
suas alternativas pessoais.
O terceiro aspecto do filme é a
História, ou melhor, a versão que
apresenta da História. Tudo se baseia no diário de Grace Elliot, iniciado precisamente a 14 de julho
de 1789, terminando anos depois,
antes de ela ser libertada da prisão, após a queda de Robespierre.
A linha do diário reflete a visão
aristocrática da autora e a partir
daí nasce a questão interpretativa.
Marco de abertura de toda uma
época, a Revolução Francesa despertou interpretações não só diversas como conflitantes. As versões foram mais ou menos prestigiosas, muito em função da época
em que surgiram: há a versão moderada dos girondinos, cara aos
círculos liberais, valorizando a figura de Danton; há a versão jacobina, que o Partido Comunista
francês e outras correntes encamparam, colocando no centro do
palco Marat e principalmente Robespierre, o incorruptível; há a
versão da esquerda trotskista, que
privilegia o igualitarismo de uma
facção dos "sans-culottes", na
qual Robespierre figura como
carrasco. Há ainda uma interpretação mais recente, vejam-se os
trabalhos de François Furet
-que se concentra como explicação na linguagem revolucionária
e coloca os conflitos de classe em
distante segundo plano.
Mas falta mencionar outra visão, a monarquista, de que Elliot é
um precioso exemplo, como contemporânea dos acontecimentos.
O filme de Rohmer baseia-se nessa versão e poderia ser tomado
como uma obra "reacionária",
como vem acontecendo em alguns meios. Hoje, porém, depois
dos horrores associados às grandes revoluções, o Terror de 1793-1794 na França, os extermínios de
Stálin etc., podemos encarar os
mitos revolucionários com maior
espírito crítico e menor comprometimento.
Não é um ganho menor dessa
perspectiva que ela nos possibilite
fruir a riqueza de obras de arte
controvertidas e, sem viseiras,
abrir uma janela para as complexidades da História.
Boris Fausto, 72, é historiador e autor
de "A Revolução de 30 - Historiografia e
História", entre outros livros
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