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CANNES 2004
Com orçamento zero, longa tem première mundial em negociação com o Festival de Veneza, em setembro
Cineastas desviam olhar para São Paulo
DO ENVIADO A CANNES
O projeto de "Bem-Vindo a São
Paulo - Welcome to São Paulo"
surgiu da constatação do cinéfilo,
jornalista e empresário de cinema
Leon Cakoff, 56, de que o festival
que criou e dirige dispõe de um
ativo humano que nem sempre é
aproveitado em sua plenitude:
uma profusão de diretores internacionais que, há 28 edições, desde a primeira Mostra, vêm para e
vão de São Paulo sem que deixem
necessariamente uma marca.
(Para ter uma idéia, em 92, um
desconhecido Quentin Tarantino,
presidente do júri de Cannes 2004
e um dos diretores norte-americanos de mais personalidade, levou à cidade seu longa de estréia,
"Cães de Aluguel", para a descoberta e deleite do público paulistano -e para uma entrevista coletiva quase vazia, fato que Tarantino lembra hoje com uma certa
ironia, conforme disse à Folha.)
Para satisfação de Cakoff, a receptividade da idéia foi grande. E
por que São Paulo, além do óbvio
fato de se tratar da cidade-sede do
evento? "Muito se fala da generosidade brasileira, mas esquecemos que São Paulo é o maior símbolo disso, tanto para migrantes
quanto imigrantes."
Se o cinema independente convive há algum tempo com os chamados filmes low-budget (orçamento baixo, em inglês), "Bem-Vindo" quer inaugurar a era do
"no-budget". Todos participaram
gratuitamente, e empresas estão
fechando colaborações no mesmo teor. O retorno começa: o Festival de Veneza, que acontece em
setembro, demonstrou interesse
em fazer a première mundial.
Tudo começa com uma tomada
aérea de um helicóptero que refaz
do ar o caminho dos jesuítas, vindo do mar em direção ao planalto.
Logo entra o segmento de Phillip
Noyce, um dos cineastas mais interessantes da atualidade, que alterna uma carreira sólida em
Hollywood (é dele "Perigo Real e
Imediato", entre outros) com
uma atuação forte no cinema independente.
Em sua passagem pela cidade, o
australiano se encantou pelo Marco Zero, na praça da Sé, e parte dele e da população local para registrar sua visão. Já Hanna Elias saiu
da Faixa de Gaza direto para o ensaio da escola de samba Vai-Vai e
se encantou com a sensualidade
escancarada das passistas.
O malaio Tsai Ming-Liang ("O
Buraco") viajou 60 horas, ida-e-volta, para ficar apenas três dias,
período em que se encantou pelo
edifício São Vito, que filmou em
close como se fosse um aquário,
aproveitando que a semana era de
chuva e que um vendedor de peixinhos de aquário vivos passava
pela frente do prédio decadente
do centro de São Paulo.
A portuguesa radicada em Paris
Maria de Medeiros parou especialmente na cidade, na volta do
Festival de Mar del Plata, por um
dia e meio, que gastou quase na
íntegra na esquina das avenidas
São João e Ipiranga captando
imagens. Sua participação tem o
formato de um sonho, em que ela
toca a melodia de "Sampa" no bar
Brahma para depois sussurrar a
letra, sem acompanhamento e
com sotaque lusitano.
A canção volta ao centro do último segmento, imaginado pelo
alemão Wolfgang Becker, autor
do belo "Adeus, Lênin", atualmente em cartaz. Ele começa com
uma vista do globo terrestre que
vai se refinando até chegar ao Estado de São Paulo, à capital, suas
ruas e avenidas, que são retratadas como veias e artérias, cujo
sangue vai escorrer até a ponta de
uma agulha de um toca-discos de
um sebo. Quando esta atinge o vinil, ouve-se de novo "Sampa".
"Todos são diretores contribuintes ou convidados", define
Leon Cakoff. Não havia limite de
tempo; assim, há participações de
alguns segundos e outras de 15
minutos. A unir tudo isso, uma
crônica sobre a cidade, que a produção do filme negocia no momento para que o músico Caetano Veloso (não por acaso autor de
"Sampa") seja o narrador.
Pouca gente convidada ficou de
fora. Uma das principais ausências é o diretor iraniano Abbas
Kiarostami, que ganhou a Palma
de Ouro em Cannes em 1997 por
"Gosto de Cereja" e foi "adotado"
pela Mostra de São Paulo, que já
exibiu todos os seus filmes e fez
retrospectiva. Um conflito de
agendas o fez dizer não.
Sua lacuna virou o episódio "Esperando Abbas", dirigido por Cakoff, em que ele sai pela cidade dirigindo um carro e falando diretamente à câmera. Relembra uma
das passagens de Kiarostami por
São Paulo em 1994, ocasião em
que escreveu um roteiro sobre um
menino de rua, chegando mesmo
a captar algumas imagens dele.
Enquanto conta essa história,
Cakoff dá de cara com o ex-menino de rua, agora um mendigo
adulto, pedindo dinheiro na mesma região da Paulista em que foi
filmado por Kiarostami. Quando
ouve a história do filme, o rapaz
manda um recado: "Diga ao Abbas que estou bem".
(SÉRGIO DÁVILA)
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