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MÚSICA
Sambista lança "Sempre a Cantar" e fala sobre contatos com o maestro Villa-Lobos e a psiquiatra Nise da Silveira
Ouça a voz e o samba de Dona Ivone Lara, 83
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL
Não é preciso dizer quase nada.
Dona Ivone Lara, 83, é a maior das
cantoras e autoras vivas de samba. Está lançando um CD de composições inéditas, "Sempre a Cantar", editado no Brasil pelo selo
independente MZA, mas financiado pelo equivalente francês Lusáfrica, do cabo-verdiano José da
Silva. O resto ela mesma diz. Escute a voz de Dona Ivone Lara.
Folha - A sra. poderia contar como se envolveu com música?
Dona Ivone Lara - Fui criada no
meio de músicos. Meu ambiente
familiar, no largo da Segunda-Feira, era muito alegre, com sambistas, chorões. Aprendi a cantar, a
dançar e a gostar. Perdi meus pais
e fui internada dos nove aos 18
anos. No colégio interno não cantávamos sambas, mas cantávamos hinos cívicos. A mulher do
maestro Heitor Villa-Lobos, dona
Lucília Guimarães Villa-Lobos,
era professora de música e lecionava no colégio onde eu era interna. Cantei sob regência de Villa-Lobos no Orfeão dos Apiacás.
Folha - O que é um orfeão?
Ivone - Orfeão artístico são vozes
selecionadas no meio dos alunos,
vozes que aparecem mais, são
mais firmes e afinadas. Eu devia
ter meus 12 anos, já cantando.
Uma vez ou outra Villa-Lobos fazia visitas às escolas para ouvir os
orfeões cantarem composições
dele e de outros. Mas nós não conversávamos com ele, não.
Folha - O samba já era presente
em sua vida nessa época?
Ivone - Era presente quando eu
estava de férias. Quando chegava
em casa, estava no meio dos sambistas e chorões. Tio Dionísio era
chorão, tocava violão de sete cordas, fazia ensaios, era amigo de Jacob do Bandolim, Pixinguinha.
Folha - Quando a sra. soube que
viria a ser sambista?
Ivone - Ah, isso aí foi depois de
muito tempo. Antes me formei
enfermeira. Freqüentava de vez
em quando para me divertir, ia à
Escola de Samba Prazer da Serrinha, depois Império Serrano. Mas
não tinha grandes acessos, porque tinha responsabilidade como
funcionária pública. Depois passei a tirar minhas férias sempre no
Carnaval, para poder fazer parte
dos componentes da escola. Saía
na ala das baianas. Em 1965, fui
convidada para ser parceira de Silas de Oliveira num samba-enredo, "Os Cinco Bailes da História
do Rio". Todo ano o Império Serrano apresentava novidades, e naquele ano a novidade ia ser uma
mulher sendo parceira num samba-enredo. Jorge Goulart, com
aquele vozeirão, saiu puxando o
samba. E nós ganhamos.
Folha - Uma mulher autora de
samba-enredo causou escândalo?
Ivone - Houve curiosidade. Havia bastante rejeição a mulheres
em ala de compositores, mas na
minha escola não houve, porque a
ala foi fundada por meus primos,
de maneira que eles até gostaram.
Não fui rejeitada de jeito nenhum.
Folha - A cantora só foi reaparecer ainda mais tarde, não?
Ivone - Isso. A demora em ser
conhecida como cantora foi porque eu não tinha muito acesso,
não ia a rádios, não freqüentava os
festivais. Não dava tempo para
mim. Me entreguei mesmo à vida
artística de 1977 para cá, aí é que
fiquei no meio artístico mesmo.
Folha - A sra. exerceu a enfermagem como vocação?
Ivone - Olha, não foi por vocação, não, foi porque tive necessidade de ter um emprego. Passei
no concurso e tive a felicidade de
estar entre as dez primeiras candidatas, que tiveram direito à admissão no Serviço Nacional de
Doenças Mentais, do Ministério
da Saúde. Tornei-me funcionária
federal. Aí fiz o curso de assistente
social, tinha que dar assistência
não só ao doente como à família
do doente. Trabalhei na terapêutica ocupacional ao lado da doutora Nise da Silveira.
Folha - O que a sra. aprendeu com
ela sobre doenças mentais?
Ivone - Umas são congênitas,
outras surgem depois por maus
tratos ou doença. Uma coisa que
contribuía muito naquela época
para a doença mental era a sífilis.
O doente, por ignorar, não fazia
tratamento, e mais tarde vinha a
se tornar um doente mental. E havia também a parte de esquizofrenia, uma porção de diagnósticos.
Folha - Hoje as pessoas são menos "malucas" que naquela época?
Ivone - Isso não sei dizer, porque
há tanto maluco aí [ri]... Poxa, esses políticos, então... Há uma porção, mas são malucos sabidos, né?
Folha - Por que sua trajetória na
música foi tão passo a passo?
Ivone - Em 77 me aposentei da
enfermagem, aí fiquei só na vida
artística e pude fazer disco, show,
viajar. Aí houve os baianos, que
foram meus pés-de-coelho, deram meus primeiros sucessos,
junto com Clara Nunes. Quando
cantei "Sonho Meu" para Maria
Bethânia na casa de minha amiga
Rosinha de Valença, ela se encantou. Gravou, chamou Gal Costa
para fazer o contracanto. Caetano
Veloso me ouviu cantar "Alguém
Me Avisou", chamou Gilberto Gil
para cantar. Graças a Deus, foram
sucessos estrondosos, como são
até a data presente.
Folha - O samba nasceu na Bahia?
Ivone - Tia Ciata foi quem trouxe
da Bahia para o Rio, mas não sei
se nasceu lá. Vi muito o samba em
Angola, com o nome de semba.
Baiano é um pouco prosa, orgulhoso. Acham que da terra deles é
que nasceu tudo. Mas a Bahia foi a
primeira capital do nosso Brasil,
então, pensando bem, eles estão
com um pouquinho de razão.
Folha - A escravidão pegou sua
família até que geração?
Ivone - Pegou meus bisavós. Minha avó já nasceu de ventre livre,
era mucama.
Folha - O Brasil é um país livre?
Ivone - É um pouco complicado,
né? Um pouco complicado. A
gente não pode dizer de tudo, de
tudo, que é livre, não.
Folha - A sra. é uma mulher livre?
Ivone - Olha, sou, sim, porque
desde criança trabalho. Posso dizer que fui emancipada com 12
anos. Perdi o pai com três anos,
minha mãe com nove, por isso fui
internada. Tudo que fiz foi da minha cabeça, sem ninguém me
guiar. Lembranças tristes de vez
em quando vêm, mas sou guerreira. Só não fui aquilo que não quis
ser. Tudo o que usufruí e usufruo
até a data presente é porque eu
quis e fiz por onde.
Folha - O que mudou entre 1947,
quando compôs o samba "Nasci para Sofrer", e 2001, quando lançou o
CD "Nasci pra Sonhar e Cantar"?
Ivone - Com o decorrer da vida,
mudei. Dos nove aos 11 anos, senti
muita falta de mãe, de direção. O
que me valeu muito foi o colégio
interno. Se fosse criada aqui fora,
não sei o que seria de mim.
Folha - Que avaliação a sra. faria
do samba em 2004?
Ivone - Acho que tem crescido
muito. Esta moçada tem dado valor ao samba, faz coisas muito bonitas, inteligentes. Mas o samba
de raiz dá origem a tudo, sem ele
não conseguiriam nada. O samba
de raiz está em primeiro lugar.
Folha - E sobre o Brasil?
Ivone - O Brasil tem sido um caso sério. Mas nós, brasileiros, graças a Deus tiramos isso de letra.
Ninguém se impressiona com o
que acontece, quase sempre vêm
coisas boas. Deus é brasileiro.
Folha - O Brasil respeita seus cidadãos de mais idade?
Ivone - Não tenho do que me
queixar, tenho sido bem tratada.
Respeito e considero os outros, tenho que ser considerada, não é isso? A gente tem que se impor.
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