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ARTIGO
Isso que está acontecendo me deixa muito humilhado
TOM ZÉ
ESPECIAL PARA A FOLHA
O Brasil, esse caldo infusório, pelo menos em música e
até em moda é espermatozóide.
Veja Flávio de Carvalho, com
aquele conjunto de saia e blusa
para homem nos anos 60. Veja o
louco do Jânio Quadros usando
aquela bata, então chamada de
traje safári, enquanto presidente
da República. Lembre o surto de
tecidos e de modelagem da fábrica Bangu do Rio nos anos 50. Veja, mais atrás, o relógio de pulso
de Santos Dumont. E hoje toda
essa energia quântica dos desfiles.
Alguns anos atrás, em Nova
York, quase na hora de voltar para o Brasil, saí para procurar roupa. Uma moça da Luaka Bop (a
gravadora) me acompanhou,
aconselhada por Bonnie Byrne,
mulher de David, que também
desenhava para algumas lojas.
Corri uma porção de magazines. Não se achava nada que desse
vontade de vestir. Já desistindo, o
funcionário de certa loja, não sabendo que falava com um brasileiro, me disse: "Você, que viaja
muito, sabe onde é possível encontrar roupa boa, tecidos finos,
estamparia elegante, qualidade de
corte? Tudo isso você acha no
Brasil e na Itália".
A época do tropicalismo colocou
também em questão o que era
vestimenta. Até então homem
não vestia amarelo e vermelho,
por exemplo. Certo dia, em Irará,
saí com uma camisa com um filete amarelo, e um menino gritou:
"Roupa de mulher!".
Hoje estão bem cotados até os
sapatos brasileiros. E Ronaldo
Fraga e seus colegas estão engajados num trabalho brilhante,
abrindo as fronteiras do consumidor estrangeiro para a mercadoria brasileira. Pode-se dizer que
são gênios atuais da produção de
moda. Todo mundo sabe como é
difícil vender algo ao exterior e
como o Brasil precisa disso.
Nos anos 80, eu tinha hábito de ir
à rua Clodomiro Amazonas, no
Itaim. Depois da avenida Juscelino Kubitschek, as lojas expunham a produção que empresários e estilistas iniciantes propunham para vender a todo o Brasil.
Eu parava o carro e ia a pé,
olhando de vitrine em vitrine, como se estivesse num museu ou
numa feira de exposição, procurando naquela criatividade vital
encontrar inspiração para meu
próprio trabalho. O que figura
nos meus discos de hoje se deve,
parcialmente, a essa instigação.
Domínio público
Pela lei brasileira, um trabalho
musical passa a ser considerado
de domínio público 150 anos depois da morte do autor. É verdade
que fui enterrado vivo em 1970, na
divisão do espólio do tropicalismo. Mas, mesmo de acordo com
essa contagem, só tenho 34 anos
de morto. Então minha música
ainda não é de domínio público.
Cacilda Becker que me ajude:
não posso dar de graça a única
coisa que tenho para vender. Senti
muita humilhação com esse episódio. Tenho 67 anos, e o assunto
da sobrevivência é tema de pensamento de grande parte dos meus
dias, pois até hoje não descobri
ainda outro meio de ganhar a vida, de sustentar minha família, de
ter dignidade e respeito próprio, a
não ser vendendo o que faço.
Ronaldo Fraga alega que está fazendo divulgação de minha obra.
Divulgação, é claro, é necessária
em qualquer ramo. Ora, várias vezes comprei na loja de Ronaldo
Fraga e sempre paguei o que comprei. Apresentei-me em programas de Serginho Groismann e de
Ana Maria Braga, por exemplo,
usando roupas dele, nem por isso
me considerando divulgador visual da marca. Jamais me passou
pela cabeça pedir abatimento,
quando da compra, porque estaria fazendo divulgação. Quanto
mais, alegando que eu estava me
convertendo em passivo modelo
da loja, argumentar que ele deveria me dar as roupas de graça.
Isso que está acontecendo com
a minha música me deixa realmente muito humilhado. Não sou
uma vedete, mas imagine se Ana
Paula Arósio, que é naturalmente
muitíssimo divulgada pela Embratel, não recebesse um honrado
pagamento pelo seu trabalho.
Pedi R$ 30 mil, mas, quando
João Marcello Bôscoli, presidente
da Trama, minha gravadora, me
chamou ao telefone, compreendi
que, do ponto de vista de artista
da gravadora, eu deveria levar em
consideração o problema da divulgação. Tanto que autorizei
João a negociar com Ronaldo Fraga e aceitar um preço a que chegassem, por acordo.
Para estudantes, cineastas, dramaturgos, encenadores, profissionais iniciantes, concedo uma
média superior a dez autorizações
por mês, abrindo mão de quaisquer direitos autorais, quando
eles me consultam para inserir
minhas músicas em seus trabalhos. Em tais casos, estou dialogando com a nova geração, ainda
desprovida de recursos, e concedendo-lhe, na minha medida, o
que considero meu dever, um mínimo de possibilidades.
Tom Zé, 67, é músico
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