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Poeta revela, em testemunho, um Samuel Beckett boêmio, generoso e "intenso", pondo em questão sua mítica soturnez
A paixão de Beckett
PHILIPPE SOLLERS
ESPECIAL PARA O "LE MONDE"
Em Paris, em 1959, um escritor
marginal e bizarro de 53 anos faz
amizade com um casal estranho e
reservado. Ele, pintor e desenhista; ela, poeta de origem americana. Eles são judeus e têm duas filhas pequenas.
O trio sai à noite, bebe e fuma
bastante, e a poeta descreve o escritor da seguinte maneira: "Um
homem determinado, intenso,
erudito, apaixonado e, sobretudo,
belo, habitado pelo sopro divino".
Ou, ainda: "Ele era poeta até na
menor de suas fibras e células".
Não será um exagero? Não, trata-se de Samuel Beckett (1906-89), a
quem Anne Atik conheceu bem, a
ponto de lançar "Comment C'Était" (Como Era) -livro baseado
em suas memórias sobre o homem e o artista Samuel Beckett.
Avigdor Arikha já conhece Beckett; Anne Atik o descobre. Juntos, eles vagueiam de madrugada
por Montparnasse. Tomam uísque, vinho, cerveja, champanha.
Voltam para casa, cambaleando e
recitando poemas. Beckett jamais
aparenta estar embriagado; sua
memória é fenomenal, ele parece
conhecer livros inteiros de cor e
estar familiarizado com os detalhes de centenas de quadros expostos por todo o mundo.
Reza a lenda que Beckett era
uma esfinge ou uma múmia impassível, um esqueleto niilista,
uma fria abstração inumana, um
santo invertido, um morto-vivo
manipulador de marionetes desesperadas. É evidente que ele
criou essa imagem para garantir
sua paz, mas nada poderia ser
mais distante da verdade, e é por
essa razão que o testemunho direto de Anne Atik é tão precioso, tão
sensível, tão insólito.
Beckett? Generosidade, bondade, atenção às crianças, jogador
(xadrez, sinuca), pianista, esportista (ele nada, caminha, joga críquete e gosta de assistir a partidas). Silencioso? Sim, mas para
interromper o imenso bate-papo
superficial humano, sua rotina,
sua inautenticidade, sua eterna
lengalenga.
Com o passar do tempo e a chegada da celebridade incômoda,
ele passa a ter jantares tranquilos
na casa de Anne e Avigdor.
Ele fala de uma infância próspera e feliz: "Ele se indagava por que,
para muitos de seus leitores, seus
escritos indicavam que ele teria tido uma infância infeliz". Longe
disso: passeios no campo com seu
pai, confiança e luz. De tempos
em tempos, ele passa de um silêncio moderado a um mutismo profundo: "Era delicado romper o silêncio. Teria sido pior do que interromper uma confissão".
De vez em quando Sam e Avigdor se levantam, de punho cerrado, para declamar um verso.
Francês? Apollinaire. Alemão?
Goethe. Italiano? Dante. Beckett
chega ao ponto de encarar o português para ler Pessoa.
Quase ao final de sua vida, no sinistro lar de sua velhice, Beckett
ainda recebe seus amigos, com
sua garrafa de uísque Jameson
("vinda diretamente da Irlanda")
e não rejeitando um charuto.
Morre em 12 de dezembro de
1989. Os obituários de um Prêmio
Nobel de Literatura já estão prontos. Yeats: "A morte de amigos, a
morte! De cada olho que brilha! E
que cortava o fôlego! Foram reduzidos a nuvens do céu...".
COMMENT C'ÉTAIT - SOUVENIRS SUR
SAMUEL BECKETT. De: Anne Atik.
Editora: Editions de L'Olivier. Quanto:
20 (cerca de R$ 70), 168 págs. Onde
encomendar: www.amazon.fr; www.fnac.com.
Philippe Sollers, 67, é escritor e ensaísta, autor de "O Parque" e "Sade contra o Ser Supremo"
Tradução Clara Allain
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