São Paulo, quinta-feira, 31 de julho de 2008

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NINA HORTA

A panela mágica dos ingredientes


Quando não se conhece o ingrediente, podemos ficar anos tentando entender o nosso desejo

DE VEZ em quando, um artigo de revista velha me põe a pensar ou me intriga. Na "New York Times Magazine" de maio, por exemplo, nem tão velha, li um artigo de uma russa.
Quando pequena, na escola, a professora deu o tema para que a classe escrevesse. "Se um gênio aparecesse para você, o que pediria?" Direito a um único desejo. A estudante achou a pergunta ótima porque sabia muito bem o que responder. Escreveu sobre o assunto com toda a honestidade de que era capaz. Quando a professora leu a composição (como se chamava antigamente), ficou lívida e sussurrou ao seu ouvido: "Será que você não preferiria a paz mundial?". A russinha corou, desapontada. Claro que queria a paz no mundo, estava politicamente muito consciente do que se passava ao seu redor, mas o que enchia sua cabeça de sonhos era uma panela mágica que produzisse, de uma hora para outra, sem necessidade de ingredientes, tudo o que você imaginasse.
E tinha que ser mágica, pois na época, na Rússia, a comida era pouca.
Realmente, quando temos fome, prestamos muito mais atenção à comida. E quando não se conhece o ingrediente, podemos ficar anos tentando entender o nosso desejo sem forma. Uma alcachofra, por exemplo, muito difícil de descrever.
Tenho desejo de krill, aquele camarãozinho mini que as baleias comem. E vocês?
Uma americana veio ao Brasil e foi tentar me explicar uma coisa que tinha adorado. Me deu um branco na cabeça e eu não conseguia identificar por nada deste mundo. Uma bolinha negra, com um invólucro duro e uma gelatina gosmenta por dentro, que não precisava descascar e que era doce. Pasmem, mas não adivinhei que era jabuticaba.
Dependendo da descrição do narrador, você pode cair numa tentação desmerecida. Monteiro Lobato, por exemplo, descrevia as frutas do pomar doido de Dona Benta e os biscoitos de Tia Nastácia com uma graça que nos fazia querer comer de tudo, aliás, mudar para o sítio imediatamente.
Minha mãe, por sua vez, tinha uma história sádica na qual eu caía toda vez que ela saía para uma festa.
Era muito criativa e dramática e me prometia trazer um piquenique vindo de uma família de formigas que ela conhecia muito bem. Logo de manhã, a mesma história de sempre.
Vinha vindo com a cestinha, com todas as mais minúsculas iguarias.
Um pernilzinho do tamanho de uma unha, mas dourado e com cerejas rubras com cabo verdinho. Tudo inho, inho, inho. E pastéis mínimos, mínimos, com um quadradinho de queijo derretido... E, depois de 20 comidinhas deslumbrantes, ela tropeçara na ponte e todas as coisas caíam lá embaixo e o rio levava. Deveria ser um treino para aumentar meu limiar de frustração, com certeza.
A russa nunca vira um aspargo (estou inventando à beça sobre a russa, porque já joguei a revista fora) e, no seu pensamento, era alguma coisa bem semelhante, mas o sabor deixou a desejar. É claro, os sabores da fantasia são sempre mais fortes.
E quem ouve falar de ostras sem conhecer? Um cheiro de mar, um bafo de mar. E encontra aquela pocinha melequenta? Feia fora da concha.
Depois vem a primeira prova, a segunda. E a realidade e o hábito e o costume fazem do bicho um amigo gostoso.
O problema é que, hoje em dia, tanto a russa quanto nós não podemos mais sonhar. Se nos falam de um prato da Nova Zelândia nunca visto, roxos de curiosidade, corremos para a internet e achamos milhares de receitas e imagens e opiniões e blogs de como fazer, onde achar os ingredientes e onde comprá-los. A tal panela da russa, o seu único desejo, se materializou sem que nem percebêssemos. Ela acabou chegando à conclusão de que o melhor mesmo seria ter pedido pela paz no mundo.

ninahorta@uol.com.br


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