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Censura fina
Regime modera repressão a escritores, mas Taiwan e dissidentes permanecem temas vetados; vida privada e ascensão das mulheres são novos chamarizes editoriais
Novo imaginário chinês é dominado pelo slogan do líder Deng Xiaoping: "Enriqueçam!"
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ALEXIS LACROIX
No "Império do
Meio", os escritores parecem estar
condenados a serem amordaçados,
ou, pelo menos, a "autolimitar"
o exercício da liberdade de expressão.
No momento em que a comunidade internacional volta
sua atenção à China, a "Le Magazine Littéraire" quis aprofundar sua reflexão sobre o que
está em jogo na criação literária dentro de um regime de
censura.
Como se dá a ingerência do
poder do Estado na literatura
chinesa? A censura paralisa os
escritores? Ou os leva a enveredar por caminhos esquivos e
manobrar para escapar das
proibições? Até que ponto sua
situação é comparável com a
dos dissidentes soviéticos?
Ainda existe a possibilidade de
uma abertura?
Essas perguntas foram discutidas por dois conhecedores
da realidade do país: o sinólogo
francês Jean-Luc Domenach,
diretor do Centro de Estudos e
Pesquisas Internacionais, e o
editor Philippe Picquier.
PERGUNTA - Quais são as relações
entre literatura e censura?
PHILIPPE PICQUIER - Hoje a censura na China assume formas
muito diferentes das que prevaleceram nas primeiras décadas do regime comunista. Durante a Revolução Cultural, a
censura foi implacável. Desde
então, os escritores vêm tendendo à autocensura.
Além disso, a situação de
muitos escritores tornou-se
mais nuançada. Desde que não
falem nem do Partido Comunista nem dos dirigentes, da religião ou do Tibete, gozam de
certa margem de manobra, e a
censura os deixa em paz.
Quando assinam produtos
muito bons, impregnados de
referências ocidentais, mas
fundamentalmente destituídos
de qualquer conotação política,
os autores chineses não enfrentam nenhuma dificuldade.
Nessa situação ambígua,
muitos foram levados a aplicar
a "teoria da evasão". Com apenas 50 anos, escritores como
Yan Lianke, Bi Feiyu ou Mo
Yan às vezes se autocensuram.
Mas encontraram na paródia
e na ironia e, de modo mais geral, na insistência no "valor alusivo das coisas" meios de contornar o dispositivo estatal e
implacável da censura.
Ao preço de uma grande verborragia ou disfarçando seu
discurso como transposição histórica, esses escritores "codificam" suas mensagens. Condenam a opressão, mas o fazem
de modo oblíquo.
Tanto Mo Yan quanto Yan
Lianke são filhos da Revolução
Cultural e das instituições -no
caso, do Exército, do qual saíram. São mestres em "mostrar
as nuvens para designar a Lua".
Assim, enquanto Mo Yan não
pára de denunciar alegoricamente a burocracia do Exército, em histórias que freqüentemente caem no fantástico, como é "O País da Bebida", Yan
Lianke, no grande romance "O
Sonho da Vila dos Ding" (de divulgação proibida), põe em cena seu povoado natal, contaminado pela Aids.
JEAN-LUC DOMENACH - Assim como o sr., acredito que o discurso onipresente de alguns militantes ocidentais dos direitos
humanos é inoperante no caso
chinês.
Nos últimos meses, a mobilização desses ativistas, superexposta na mídia, sugere que nada acontece na China e que a situação dos direitos humanos
não parou de piorar nas últimas duas décadas.
Na realidade, Philippe Picquier tem razão em lembrar
que na China as verdadeiras
questões em jogo não podem
ser reduzidas a um confronto
caricatural entre o mutismo da
sociedade civil e o do poder.
Mas minha interpretação da
situação atual certamente seria
bastante diferente da sua. Como o sr., eu constato que os chineses não passaram os últimos
20 anos inertes. Tanto as classes populares quanto os intelectuais não pararam de inventar estratégias para fazer frente
ao controle das autoridades.
É por isso que o conceito de
"contorno", aplicado às estratégias usadas pelos escritores,
me parece igualmente apropriado.
PERGUNTA - Como se dá o contorno
da censura?
PICQUIER - Os escritores atuais
utilizam a censura de forma inteligente. Fazendo a ficção funcionar como máquina para tratar obliquamente a realidade
que os cerca, eles limam as grades de sua prisão cotidiana, deixando a seus leitores o encargo
de ler nas entrelinhas, para levar adiante sua reflexão.
Em seus primeiros livros
(peças de teatro ou narrativas
breves), [o Prêmio Nobel de
2000] Gao Xinjiang lançou luz
sobre o absurdo do mundo por
meio de pequenos toques impressionistas.
Em seu romance "A Serviço
do Povo" [ed. Record], Yan
Lianke não se contenta em usar
a ironia como arma e narrar a
paixão tórrida da mulher de um
coronel por seu jardineiro -ele
solapa de modo sub-reptício os
alicerces da fé na instituição.
Não é por acaso que "A Serviço do Povo" foi proibido, tendo
seus exemplares impressos sido apreendidos. Mas o romance de Yan Lianke pôde ser publicado fora do país.
E, apesar disso, seu autor foi
autorizado a continuar a escrever e publicar, além de conservar sua residência e o veículo ao
qual seu cargo lhe dava direito.
Sob uma condição expressa,
porém: que se mantenha calado no espaço público.
Essa anedota ilustra de maneira exemplar o jogo existente
na China entre a paisagem literária e as autoridades.
Não existe conivência entre
os dois lados. Os escritores chineses não têm nenhum sentimento de cumplicidade para
com as instituições responsáveis pela censura. Mas tolera-se
uma crítica velada, desde que
não sejam atravessados os limites do confronto.
DOMENACH - O contorno é a atitude mais freqüente, mas não é
universal. Também há dissidentes -e especialmente escritoras dissidentes, como Yu
Jie- que não hesitam em travar um braço-de-ferro direto
com o poder, pois acreditam
que a luta aberta comporta a hipótese de vitória.
Eles sobrevivem com dificuldade, já que o poder os persegue, como, por exemplo, com a
destruição de endereços e
mensagens de e-mail. Mesmo
nesse caso, porém, existem
acomodações inesperadas.
A escritora Yu Jie me explicou recentemente que foi autorizada a lecionar um mês por
ano em uma universidade norte-americana.
Considerando esses casos, é
possível pensar que a situação
vigente na China hoje se assemelha um pouco aos últimos
anos da União Soviética.
Aliás, tudo parece indicar
uma inflexão do domínio do
poder. Não se trata mais de
controlar ou reprimir tudo.
O essencial hoje é aplicar a
vigilância em relação apenas
aos pontos mais importantes.
Os temas mais "radioativos"
para os escritores são tudo
aquilo que diz respeito aos dissidentes, a Taiwan, aos dirigentes e à vida privada destes.
PERGUNTA - As produções editoriais chinesas recentes refletem essa
flexibilização das restrições?
DOMENACH - Trouxe de minhas
últimas viagens à China uma
série de textos totalmente novos na paisagem editorial. São
livros de memórias extremamente originais, assinados ou
por ex-dirigentes que sobreviveram ou por seus secretários,
suas mulheres ou seus filhos.
É claro que essas biografias
obedecem às regras de prudência elementar, evitando fazer
qualquer negação crítica.
Os autores nunca incriminam diretamente os governos
chineses passados -limitam-se a sugerir que o "herói" de
suas memórias foi maltratado
pelo poder da época.
Cada vez mais mulheres de
dirigentes se afirmam, após as
mortes de seus maridos, como
administradoras da memória
deles ou até mesmo depositárias de seus legados.
Foi o caso, recentemente, da
mulher de Deng Xiaoping, que
também escreveu suas memórias com muita sutileza.
Percebe-se também uma
"perestroika" literária, com a
ocorrência de um interesse
crescente do público chinês pelo indivíduo e pela família.
PERGUNTA - É a tradução chinesa
da revolução individualista?
DOMENACH - As estratégias da
intimidade se impõem como
chaves para compreender o
conjunto da realidade social,
inclusive na cúpula do Estado.
PICQUIER - Para voltar às estratégias da intimidade, acrescentaria que o novo imaginário
chinês é dominado pelo slogan
de Deng Xiaoping -"enriqueçam!". Assim, não é por acaso
que Confúcio esteja sendo rapidamente reabilitado hoje.
E, com ele, não apenas a célula familiar e a intimidade do casal, mas também os conceitos
de ordem e hierarquia: permaneçam confucianos e, na literatura, poderão fazer o que melhor lhes convier.
PERGUNTA - Nesse contexto, como
os escritores chineses podem se engajar? Ingressando na dissidência?
PICQUIER - De uma maneira diferente da dos intelectuais ocidentais, é claro.
Em razão das dificuldades
inerentes a sua situação, muitos se mostram pragmáticos.
Assim como os editores, na
ausência de alternativa melhor,
aceitam a evolução em curso na
produção cultural: de um lado o
domínio do Estado sobre todas
as editoras; de outro, um relaxamento progressivo do controle do Estado sobre a difusão
e distribuição de livros e sobre
o controle dos direitos autorais.
Se, por outro lado, um escritor não aceitar esse estado de
coisas e exprimir abertamente
sua desaprovação, é obrigado a
fugir para o exterior ou a refugiar-se num "exílio interno",
que lhe proíbe qualquer manifestação pública.
PERGUNTA - A perestroika literária
que, segundo os srs., existe até certo
ponto na China autoriza a divulgação de escritos sobre a vida íntima,
mas continua a proibir qualquer
questionamento sério sobre a história do regime. Por que, então, os intelectuais chineses, contrariamente
aos dissidentes soviéticos, não recorreram aos jornais clandestinos
("samizdats")?
DOMENACH - Os intelectuais
chineses têm a impressão de terem perdido uma série de batalhas. Desde os anos 1930, os escritores comunistas afirmaram
seu predomínio, derrotando os
social-democratas.
Mais recentemente, a batalha democrática voltou-se contra seus principais arquitetos:
os escritores democratas, impregnados pelos valores ocidentais, foram arrasados.
Desde então, eles nivelaram
suas ambições por baixo. Sua
tendência passou a ser sobretudo de ater-se aos limites impostos pelo poder.
Quanto aos "samizdats", a
primeira razão pela qual não
existem na China é um problema de recepção: simplesmente
não haveria muitas pessoas para lê-los e para sustentar seus
autores.
Além disso, o boom econômico modificou profundamente o cotidiano dos chineses, como os próprios democratas se
esforçam para reconhecer.
Hoje, muitos dirigentes chineses têm consciência de que a
passagem para a democracia é
algo que, no longo prazo, não
poderá ser evitado.
Embora os ocidentais não os
levem a sério, a maioria dos chineses -incluindo os escritores- pressente que a situação
de seu país talvez esteja menos
bloqueada do que parece.
Finalmente, a democracia
ocidental, vista a partir da China, está longe de representar
um modelo invejável.
PERGUNTA - Os escritores chineses
também estão impregnados por esse relativismo?
PICQUIER - Os ocidentais, quando se prendem a seu conceito
de universal e de direitos humanos, correm o risco de romper o diálogo com a China. Seria ainda mais prejudicial corrermos o risco de, com isso, fazer abortar as tentativas democráticas autênticas na China.
Longe de nossas representações nitidamente delimitadas,
a maioria dos escritores chineses prima por navegar por vias
oblíquas.
Não é por acaso que, como
vem ocorrendo na Índia, um
número cada vez maior de mulheres vem ingressando na carreira de escritoras.
DOMENACH - Com a exceção de
uma mulher, Chai Ling, que se
destacou na dissidência chinesa em 1989, todos os dissidentes mais conhecidos até agora
têm sido homens.
Mas o fenômeno mais marcante dos últimos anos não é,
portanto, a tentativa de sobrevivência dos democratas reprimidos em 1989 [no massacre de
Tiananmen] -é a emergência
de uma geração literária, em
grande parte feminina, que é
portadora de valores alternativos e, a meu ver, promissores.
A íntegra deste texto foi publicada no "Magazine Littéraire".
Tradução de Clara Allain.
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