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+ cultura
O antropólogo que criou o termo "supermercado de estilos" vê a proliferação do
uso de piercings e tatuagens como uma recusa da lógica imediatista do mercado
O grito íntimo das ruas - Ted Polhemus
Tarcisio d'Almeida
especial para a Folha
O antropólogo anglo-americano Ted Polhemus,
56, trocou os EUA pela Inglaterra, especificamente a ensolarada Califórnia (para onde os jovens costumavam ir) pela enevoada Londres, na
conturbada e agitada década de 1960. Esse contexto político-histórico de busca da liberdade ideológica da era hippie
e expansão da moda com o surgimento do prêt-à-porter
possibilitou a esse pesquisador estudar antropologia na
Universidade Temple, na Filadélfia, ainda nos EUA. Em
seguida, já em Londres, desenvolveu seus estudos de mestrado sobre "Body Image and Adornment" (Imagem e
Adorno do Corpo) na Universidade de Londres.
O projeto de mapear as inter-relações entre corpo e estilo na concepção de moda e comportamento sempre norteou sua verve intelectual de um antropólogo comprometido com os fenômenos da atualidade, sobretudo os que
decorrem a partir do século 20.
Em seu novo livro, "Hot Bodies, Cool Styles - New Techniques in Self Adornment" [Corpos Quentes, Estilos Legais - Novas Técnicas de Auto-Adorno,
editora Thames & Hudson, 2004), o "guru
dos estilos" e pai do conceito de "supermercado de estilos" dá mostras de como a
onda global do entusiasmo para a decoração do corpo é enraizada em nosso passado e examina ainda seu sentido na prospecção do futuro.
Leia a seguir entrevista com Polhemus,
que esteve pela primeira vez no Brasil em
agosto, para um workshop.
O que é essencial a um relato antropológico da moda: a visão da "atualidade vivenciada" e/ou o mergulho histórico?
O essencial para uma abordagem antropológica do estilo (prefiro esse termo ao mais limitado "moda") é
uma apreciação do extraordinário poder da comunicação visual e um sentido da importância vital, mesmo
hoje, dessa forma de expressão humana.
Moda e comportamento são palavras que interagem e coexistem? Como o sr. vê essa inter-relação?
O estilo visual é parte do comportamento humano e, na
minha concepção, é uma parte vital. Tanto no nível individual como no social, o estilo e a aparência (e isso vale para todas as culturas e eras históricas) refletem outros comportamentos e (é defensável que o façam mais
perfeitamente do que outros meios, incluindo a expressão verbal) os expressam.
O que faz com que haja uma democratização de acesso à
moda?
Nunca como hoje as pessoas se viram tão livres para escolher a própria aparência de seu estilo. Se um dia a
aparência foi determinada pela tribo e, depois, pelo sistema da moda, hoje a pessoa comum constrói o seu
próprio modo de se apresentar.
Como o sr. entende a força ideológico-política que uma roupa pode exercer nas pessoas?
As roupas são algo ideológico-político porque elas,
bem como todos os outros aspectos da aparência, refletem e expressam nossos próprios valores e crenças,
bem como os "fatos sociais" que subjazem à sociedade
mais ampla. Sempre que se tem uma mudança de ordem fundamental no mundo em que vivemos, obviamente, então, o estilo acaba refletindo isso. Por exemplo, a passagem do modernismo para o pós-modernismo trouxe consigo a passagem da moda para o estilo.
Pode-se dizer que a "democratização" obtida com a produção em série surgida com a moda prêt-à-porter serviu de
terreno propício para a moda olhar mais para os fenômenos
sociais, de que são exemplos o "streetwear" e o hip hop?
Não, não foi apenas a produção em massa que conduziu a uma democratização da moda. Uma das mais
profundas transformações socioculturais da segunda
metade do século 20 foi a passagem da concepção de
cultura como algo vindo somente da classe mais alta
para uma noção de cultura como algo que pode vir de
qualquer parte do sistema social. O maior respeito pelo
estilo de rua (o "streetsyle") não é mais
que uma faceta desse fenômeno.
Pode-se dizer que se vive hoje em uma sociedade organizada pela "lógica da moda", que
vai além da roupa e invade todos os eixos das
sociedades e das culturas?
Não, na verdade o que procuro ressaltar
é o exato oposto disso. Nossa moda tem
sido "invadida" por nossa sociedade e
por nossa cultura, e essa invasão tem solapado e transformado a moda de tal forma que hoje não há mais moda "per se", e, de um modo
mais preciso, pode-se dizer que há um retorno à condição do estilo, mas com um novo enfoque, no individual
em detrimento do grupo, da tribo.
O que sr. pensa sobre essa constante febre do presente, exacerbada pela sociedade informacional e pelo capitalismo,
que torna rapidamente tudo obsoleto na moda? Pode-se
afirmar que ela decorre da "cultura do imediatismo", conceito que emergiu e predominou a partir dos anos 1960 na
Europa?
A cultura do imediatismo teve início com o nascimento
do modernismo e se extinguiu com o surgimento do
pós-modernismo. A década de 1960 assistiu ao último
grande florescimento dessa aderência ao novo. Para a
nossa era pós-moderna há um mérito maior em celebrar uma mudança constante e cada vez mais acelerada, daí a passagem para estilos clássicos "sem-sentido"
e um retorno a decorações de corpo em caráter permanente, como tatuagens e piercings.
O senhor usa a expressão "roubos fashion" para explicar as
apropriações, por parte da indústria da moda, dos verdadeiros estilos que emergem das ruas e das tribos por todo o
mundo.
Acho irônico o fato de as marcas de grife reclamarem
tanto ao verem seus modelos copiados toda hora, sendo que essas mesmas marcas roubam suas idéias da
história, de outras culturas e dos estilos de rua.
Que leitura o senhor tem hoje do Brasil e do design de moda
brasileiro, após sua primeira visita? Qual é a sua impressão?
Há um design brasileiro, mesmo em uma era de mercados
globais?
Há 50 anos a moda vinha exclusivamente de Paris. Então Londres, Nova York e Milão entraram em cena. Hoje estamos começando a ver uma explosão final; a sugerir que novos modelos e estilistas podem vir de qualquer parte da aldeia global.
Estilistas e marcas brasileiras podem desempenhar
um papel significativo nessa nova ordem, contanto que
tenham confiança para seguir seus próprios instintos e
sua própria cultura. Ademais, deverá haver um apoio
interno no Brasil, possibilitando a estilistas individuais
conquistar notoriedade fora. A exemplo do que muitos
países descobriram (e a Grã-Bretanha é um perfeito
exemplo disso: todos os seus estilistas trabalham fora),
tudo o que se tem a fazer é educar e treinar vários estilistas. De importância crucial é o apoio que deverão receber depois de formados.
É preciso mostrar ao mundo que o Brasil se encontra
hoje muito bem servido quanto a criatividade e excelência em moda, e que nenhum estilista -nem mesmo
grife nenhuma- tomada individualmente, pode fazer
esse trabalho sozinho.
Tarcisio d'Almeida é crítico de moda, pesquisador da história do jornalismo de moda na Escola de Comunicações e Artes da USP e professor no
curso de moda da Unip (Universidade Paulista).
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