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O AMIGO AMERICANO
Jim Cooper - 14.jun.2002/Associated Press
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O escritor Jonathan Safran Foer, autor de "Tudo Está Iluminado", em seu apartamento no bairro do Queens, em Nova York |
da Redação
Fazer reviver a lenda do gênio precoce sempre foi
uma boa forma de a indústria cultural faturar alto.
Com 25 anos, de posse de um manuscrito escrito
aos 20, mas morando no pouco badalado bairro
do Queens, em Nova York, ganhando (mal) a vida como recepcionista de uma multinacional, o ex-aluno da
prestigiosa Universidade Princeton Jonathan Safran
Foer tinha tudo para se ajustar ao perfil do gênio incompreendido -algo que sua futura editora exploraria ao
máximo.
Mas, por trás do marketing avassalador, "Everything
Is Iluminated" (HarperPerennial, 288 págs., US$ 13,95)
é um romance surpreendente, que, a partir da mistura
de gêneros e estilos e de uma grande verve humorística,
consegue dar um tratamento terno e inovador a um tema trágico, mas à beira da exaustão: o Holocausto.
A obra se divide em três planos narrativos. No primeiro, o jovem ucraniano Alex Perchov conta a história de
como se tornou intérprete de um certo Jonathan Safran
Foer, "um judeu engenhoso" que viaja pela Ucrânia em
busca de uma jovem que teria salvo seu avô dos nazistas. Esse plano é entrecortado por um segundo, inspirado no realismo mágico e em que se conta a história da
cidade de Trachimbord -em que nasceu o avô de
Foer- desde seu surgimento, em 1791, até o início da
Segunda Guerra. Um terceiro fio constitui-se de cartas
escritas por Alex para -o agora amigo- Jonathan Safran Foer, em que comenta, em seu inglês peculiar, as
tradições ídiches de seu missivista e "herói".
Servindo-se de um velho dicionário, Alex escreve sua
narrativa em uma língua macarrônica, em que o cruzamento de registros elevado e popular, utilizados fora de
contexto, produzem um efeito cômico intenso. Esse uso
intuitivo e ingênuo que faz das palavras, deslocando e
multiplicando seus sentidos, confere ao romance um
frescor que desarma inteiramente os leitores.
Oscilando entre o gênero epistolar e o conto filosófico,
passando pelo romance de pícaro, o trabalho com o
idioma é o cerne do livro, explorado até os limites do
sarcasmo e da ironia, tecendo relações novas e inusitadas entre significado e significante. Lidando com uma
tradição que remonta a Rabelais, a narrativa desmonta
a ordem do esperado e faz os olhos dos leitores se voltarem para o próprio trabalho de criação da linguagem.
Mas o lance de gênio de Safran Foer foi ter dosado a
pesquisa linguística de forma bastante precisa, de modo
que em momento algum de "Tudo Está Iluminado" o
deslumbramento com as possibilidades da forma se sobrepõe ao prazer primordial de simplesmente poder
contar uma história -ou três, mais precisamente.
Porém, mais do que um hilariante exibicionismo, a
força da obra também deriva em boa medida de seus
diálogos à la Molière, cujos mal-entendidos produzem
a impressão de um quiproquó linguístico. É o caso da
primeira conversa que Alex trava com seu "herói" Jonathan Safran Foer, quando vai recebê-lo na estação de
trem: "Sua viagem foi agradável?", perguntei. "Oh,
Deus", ele disse, "26 horas, uma porcaria inacreditável".
Essa garota Inacreditável deve ser majestosa, pensei"
[tradução literal de: "Your train ride appeased you?", I
asked. "Oh, God", he said, "twenty-six hours, fucking unbeliveable". This girl Unbeliveable must be very majestic, I thought".].
Todo o deboche ao mesmo tempo infame e sofisticado da situação vem do fato de Alex ter tomado como
verbo o que exercia a função de intensificador -para
ele, seu cliente havia passado "26 horas transando com
a Inacreditável (a tal garota "majestosa").
Romance coeso cuja força brota de sua opções formais, que compõem um mosaico ao mesmo tempo vário e uno sem perder de vista o seu objeto. É algo que
Alex lembra em carta ao amigo americano, de seu modo característico: "Eu sei que você me pediu para não alterar os erros porque eles parecem humorados, e humorado é o único meio confiável de contar uma história
triste". (MARCOS FLAMÍNIO PERES)
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